sábado, 14 de dezembro de 2013

CAPITALISMO SUSTENTÁVEL EXISTE???

“O capitalismo sustentável é uma contradição em seus termos” diz Eduardo Viveiros de Castro
Sexta, 13 de dezembro de 2013 

Crítico feroz do neoliberalismo, de seus ícones e verdades, de suas políticas de “crescimento” que destroem a natureza, do consumo que empobrece as vidas, do Estado que as administra (não sem constrangimentos) e da esquerda (conservadora e antropocêntrica). “A felicidade, diz, tem muitos outros caminhos”.
Enquanto esperamos que a Tinta Limón Ediciones termine a edição (mais ou menos alterada) do livro de entrevistas com Eduardo Viveiros de Castro, o sítio Lobo Suelto! convida  à leitura da última – muito transcendental – conversa com o antropólogo brasileiro.
A entrevista é de Julia Magalhães, publicada por Lobo Suelto!, 04-12-2013. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/p4a01c
Eis a entrevista.
Qual é a sua percepção acerca da participação política da sociedade brasileira?
Prefiro começar com uma “des-generalização”: vejo a sociedade brasileira profundamente dividida em relação à visão sobre o país e seu futuro. A ideia de que existe “um” Brasil – no sentido de que as ideias de “unidade” e “brasilidade” não são triviais – parece uma ilusão politicamente conveniente (para os setores dominantes), mas antropologicamente equivocada. Há, pelo menos, dois ou muito mais “Brasis”.
O conceito geopolítico de estado-nação unificado não é descritivo, mas normativo. Há rachaduras profundas na sociedade brasileira. Há setores da população com uma vocação conservadora enorme, que não necessariamente compreendem uma classe específica, apesar de que as chamadas “classes médias”, ascendentes ou descendentes, estão bem representadas aqui. Grande parte da chamada “sociedade brasileira” – temo que seja a maioria – se sentiria muito satisfeita com um regime autoritário, especialmente se conduzido midiaticamente por uma autoridade paternal de personalidade forte. Mas, esta é uma das coisas que a minoria liberal que existe no país – e, inclusive, é uma certa minoria “progressista” – prefere manter-se envolta em um silêncio constrangedor. Repete-se o tempo todo, e para qualquer propósito, que o povo brasileiro é democrático, “cordial” e amante da liberdade e da fraternidade, o que é uma ilusão muito perigosa.
É assim que vejo a “participação política do povo brasileiro”: como a de um povo fragmentado, dividido, polarizado. Uma polarização que não necessariamente condiz com as divisões políticas (partidos oficiais etc.). O Brasil segue como uma sociedade visceralmente escravocrata, obstinadamente racista e moralmente covarde. Enquanto não nos darmos conta deste inconsciente, não iremos “em frente”.
Em outras ocasiões, fui claro: insurreições esporádicas e uma certa indiferença pragmática em relação aos poderes constituídos, é o que se evidência entre os mais pobres – ou os mais alheios ao drama montado pelos setores de cima, na escala social – que inspiram modestas utopias e moderado otimismo por parte daqueles que a história situou na confortável posição de “pensar o Brasil”. Nós, em suma.
O que é necessário para mudar isto?
Falar, resistir, insistir, olhar além do imediato. E, obviamente, educar. Mas, não “educar o povo” (como se a elite fosse muito educada e devesse – ou pudesse – conduzir o povo até um nível intelectual superior), mas criar as condições para que as pessoas se eduquem e acabem educando a elite – e, quem sabe, inclusive, se livrem dela.
O panorama da educação do Brasil é, hoje, o de um deserto. Um deserto! E não vejo nenhuma iniciativa consistente para tentar cultivar neste deserto. Pelo contrário, tenho pesadelos de conspirações, em que sonho que os projetos de poder não se interessam realmente em modificar o panorama da educação do Brasil: domesticar a força de trabalho – se é isto que está se tentando (ou planejando) – não é, de nenhuma maneira, o mesmo que educar.
Isto é apenas um pesadelo, obviamente: não é assim, não pode ser assim... Espero que não seja assim. Mas o fato é que não se vê uma iniciativa para mudar a situação. Considerando a espetacular abertura de dezenas de universidades sem a mínima infraestrutura física (para não falar de boas bibliotecas, um luxo quase impensável no Brasil), enquanto a escola secundária segue muito deficitária, com professores que ganham uma miséria, com as greves dos professores universitários reprimidas, como se fossem ladrões. A “falta” de educação – que é uma forma de instrução muito particular e perversa, imposta de cima para baixo – é talvez o principal fator responsável pelo conservadorismo reacionário de grande parte da sociedade brasileira. Por fim, é urgente uma reforma radical da educação brasileira.
Em “A floresta e a escola”, Oswald de Andrade sonhava. Infelizmente, parece que já deixamos de ter uma e ainda não temos a outra. Pois sem escola, já não cresce a floresta.
Por onde se começa a reforma da educação?
Começa-se de baixo, é claro, a partir da escola primária. A educação pública deveria ter uma política unificada, orientada a partir de uma – com perdão da expressão – “revolução cultural”. Ela não será alcançada através da redistribuição da renda (ou melhor, com o aumento da quantidade de migalhas que caem da mesa dos ricos) apenas para comprar um televisor e para assistir ao BBB, e ver a mesma merda. Não é assim que se redistribui a cultura, a educação, a ciência e a sabedoria. Deve-se oferecer ao povo as condições de fazer cultura ao invés de consumir aquela produzida “para” eles.
Está havendo uma melhora nos níveis de vida dos mais pobres, e talvez também nos da velha classe média. Uma melhora que vai durar todo o tempo em que a China continuar comprando do Brasil ao invés de comprar da África. Mas, apesar da melhora no chamado “nível de vida”, não vejo nenhuma melhora real na qualidade de vida, na vida cultural ou espiritual, se me permite usar essa palavra arcaica. Pelo contrário. Será que é necessário destruir as forças vivas, naturais e culturais das pessoas, do povo brasileiro de instrução, para construir uma sociedade economicamente mais justa? Duvido.
Neste cenário, atualmente, quais são os temas capazes de mobilizar a sociedade brasileira?
Vejo a “sociedade brasileira” magnetizada – ao menos em termos de sua autorrepresentação normativa, por parte dos meios de comunicação – por um patriotismo oco, uma espécie de besta orgulhosa, deslumbrados pela certeza de que, de uma vez por todas, o mundo se inclinou frente ao Brasil. Copa do MundoJogos Olímpicos... Não vejo mobilização acerca de temas urgentíssimos, como poderiam ser o da educação e da redefinição da nossa relação com a terra, quer dizer, com o que há debaixo do território. Natureza e cultura, enfim, que agora se encontram, não apenas, mediadas, midiatizadas, pelo mercado, mas mediocrizadas por ele. O Estado se uniu ao Mercado contra a natureza e a cultura.
E estas questões não mobilizam?
Existe certa preocupação da opinião pública por questões ambientais, um pouco mais do que em relação às questões da educação, o que não deixa de ser algo para se lamentar, pois as duas vão juntas. Contudo, tudo me parece “too little, too late”: muito pouco e muito tarde. Está se demorando tempo demais para difundir a consciência ambiental. Uma conscientização que o planeta requer, com absoluta urgência, de todos nós. E esta inércia se traduz na escassa pressão sobre os governos, corporações e empresas que apenas investem nesse conto chinês do “capitalismo verde”. Em particular, evidencia-se muito pouca pressão sobre as grandes empresas, sempre distraídas e incompetentes quando se trata do problema da mudança climática.
Não se vê a sociedade realmente mobilizada, por exemplo, por Belo Monte, uma monstruosidade provada e comprovada, mas que conta com o apoio desinformado (é o que se deduz) de uma parte significativa da população do sul e do sudeste, para onde irá a maior parte da energia que não for vendida – a um preço extremamente barato – para multinacionais de alumínio fazerem latas de saquê – no baixo Amazonas – para o mercado asiático.
Necessitamos de um discurso político mais agressivo em relação às questões ambientais. É necessário, sobretudo, falar com as pessoas, chamar a atenção a respeito de que o saneamento básico é um problema ambiental, de que a dengue é um problema ambiental.  Não se pode separar a dengue do desmatamento e do saneamento. Temos que convencer aos mais pobres de que melhorar as condições ambientais é assegurar as condições de existência das pessoas.
No entanto, a esquerda tradicional, como está sendo demonstrado, apresenta-se completamente inútil para articular um discurso sobre os temas ambientais. Quando suas cabeças mais pensantes falam, parece haver a sensação de estar “indo para trás”, tratando desastradamente de capturar e de reduzir um tema novo ao já conhecido, um problema muito real que não está em seu DNA ideológico e filosófico. Mesmo quando a esquerda não se alinha com o insustentável projeto “ecocida” do capitalismo, revela sua origem comum a este, com as névoas e obscuridades da metafísica antropocêntrica do cristianismo.
Enquanto continuarmos sustentando que melhorar a vida das pessoas é lhes dar mais dinheiro para comprar uma televisão, ao invés de melhorar o saneamento, abastecimento de água, saúde e educação primária, nada mudará. Escuta-se o governo dizer que a solução é consumir mais, mas não se percebe a menor ênfase para abordar estes aspectos literalmente fundamentais da vida humana nas condições do presente século.
Isto não significa, obviamente, que os mais favorecidos pensem melhor e que possam ver além dos mais pobres. Não há nada mais estúpido que estas Land Rovers que vemos em São Paulo ou no Rio de Janeiro, andando com adesivos do Greenpeace, de slogans ecológicos, coladas no para-brisa. As pessoas vão às ruas nestes 4x4 e bebem um diesel venenoso... Gente que pensa que o contato com a natureza é fazer um Rally no Pantanal...
É uma questão difícil: falta educação básica, falta o compromisso dos meios de comunicação, falta agressividade política no tratamento da questão do meio ambiente.
E sempre que se pensa que existe um problema ambiental, algo que está longe de ser o caso dos governantes atuais, estes mostram, ao contrário, e, por exemplo, a preocupação em formar jovens que possam manobrar com segurança e, ao mesmo tempo, mantém firme sua aposta no transporte individual, em carros, em uma cidade comoSão Paulo, em que já não cabe nem uma agulha. Um governo que não se cansa de se orgulhar pela quantidade de carros produzidos por ano. É absurdo utilizar os números da produção de veículos como um indicador de prosperidade econômica. Essa é uma proposta podre, uma visão estreita e uma proposta muito empobrecedora para o país.
Você está dizendo que os apelos ao consumo vêm do próprio governo, mas também há um apelo muito forte procedente do mercado. Como avalia isto?
O Brasil é um país capitalista periférico. O capitalismo industrial-financeiro é visto por quase todo o mundo como uma evidência palpável, o modo inevitável em que se vive no mundo atual. Diferentemente de alguns companheiros de caminhada, eu entendo que o capitalismo sustentável é uma contradição em seus termos. E que nossa atual forma de vida econômica é realmente evitável. Então, simplesmente, nossa forma de vida biológica (quer dizer, a espécie humana) não será mais necessária e a Terra irá favorecer outras alternativas.
As ideias de crescimento negativo, ou de objeção ao crescimento, ou a ética da suficiência são incompatíveis com a lógica do capital. O capitalismo depende do crescimento contínuo. A ideia de manter certo nível de equilíbrio em relação ao intercâmbio de energia com a natureza não se ajusta na matriz econômica do capitalismo.
Este impasse, gostemos ou não, será “resolvido” pelas condições termodinâmicas do planeta em um período muito mais curto do que pensávamos. As pessoas fingem não saber o que está se passando, preferem não pensar nisso, mas o fato é que temos que nos preparar para o pior. E o Brasil, pelo contrário, sempre se prepara para o melhor. Este otimismo nacional frente a uma situação planetária é extremamente preocupante, assim como perigoso... E a aposta de que vamos bem dentro do capitalismo é um tanto ingênua, se não desesperada...
O Brasil segue como um país periférico, uma plantação “high tech” que abastece com matérias-primas o capitalismo central. Vivemos de exportar nossa terra e nossa água em forma de soja, açúcar, carne bovina, para os países industrializados: são estes quem têm a última palavra, os que controlam o mercado. Estamos bem neste momento, mas de modo nenhum em condições de controlar a economia mundial. Se a coisa muda um pouco para um lado ou para o outro, o Brasil simplesmente pode perder esse lugar no qual se encontra hoje. Para não mencionar, claro, o fato de que estamos vivendo uma crise econômica mundial que se tornou explosiva em 2008, que está longe de terminar e que ninguém sabe aonde irá parar. O Brasil, neste momento de crise, é uma espécie de contracorrente do tsunami, mas quando a onda quebrar vai molhar muita gente. Deve-se falar sobre estas coisas.
E como você avalia a macropolítica em relação a esta realidade, as políticas macroeconômicas, com as realidades rurais do Brasil, os indígenas ribeirinhos?
O projeto de Brasil, que tem a atual coalizão do governo sob o mando do Partido dos Trabalhadores (PT), considera os ribeirinhosos indígenas, os campesinos, os quilombolas como pessoas com atraso, um atraso sociocultural, e que devem ser conduzida para outro estado. Esta é uma concepção tragicamente equivocada. O PT é visceralmente paulista, o projeto é uma “paulistização” do Brasil. Transformar o interior do país em um país de fantasia: muita festa de peão de vaqueiro, caminhonetes 4x4, muita música country, botas, chapéus, rodeios, touros, eucaliptos, gaúchos. E do outro lado, cidades gigantescas e impossíveis como São Paulo.
PT vê a Amazônia brasileira como um lugar para civilizar, para domar, para obter benefícios econômicos, para capitalizar. Em uma lamentável continuidade entre a geopolítica da ditadura e a do governo atual, este é o velho “bandeirantismo” que hoje faz parte do projeto nacional. Mudaram as condições políticas formais, mas a imagem do que é ou deveria ser a civilização brasileira, daquilo que é uma vida digna de ser vivida, do que é uma sociedade que está em sintonia consigo mesmo, é muito, muito similar.
Estamos vendo hoje uma ironia muito dialética: o governo, liderado por uma pessoa perseguida e torturada pela ditadura, realizando um projeto de sociedade que foi adotado e implementado por esta mesma ditadura: a destruição da Amazônia, a mecanização, a “transgenização” e a “agrotoxicação” da agricultura, migração induzida pelas cidades.
E por detrás de tudo isso, certa ideia de Brasil que se vê, no início do século XXI, como se devesse ser, ou como se fosse, o que os Estados Unidos eram no século XX. A imagem que o Brasil tem de si mesmo é, em vários aspectos, aquela projetada pelos Estados Unidos nos filmes de Hollywood nos anos 50: muitos carros, muitas autopistas, muitas geladeiras, muitas televisões, todo mundo feliz. Quem pagou por tudo isso? Entre outros, nós. Quem irá nos pagar agora? A África, outra vez? HaitiBolívia? Para não falar da massa de infelicidade bruta gerada por esta forma de vida (e de quem se enriquece com isto).
Isto é o que vejo com tristeza: cinco séculos de maldade continuam aí. Sarney é um capitão hereditário, como os que vieram de Portugal para saquear e devastar a terra dos índios. Nosso governo “de esquerda” governa com a permissão da oligarquia e necessita destes capangas para governar. Pode-se fazer várias coisas, desde que a melhor parte fique com ela. Toda vez que o governo ensaia uma medida que a ameaça, o Congresso – que sabemos como é eleito –, a imprensa bombardeia, o PMDB sabota.
Há uma série de becos para os quais eu não vejo saída ou que não têm saída no jogo da política tradicional, com suas regras. Vejo um caminho possível pelo lado do movimento social – que hoje está desmobilizado. Mas, se não for pelo lado do movimento social, seguiremos vivendo neste paraíso subjetivo de que um dia tudo vai ficar bem. O Brasil é um país dominado politicamente pelos grandes proprietários de terra e grandes empreiteiros que jamais sofreram uma reforma agrária e ainda dizem que atualmente não é mais necessário fazê-la.
Acredita que as coisas começarão a mudar quando chegarmos a um limite?
É provável que a crise econômica mundial afete ao Brasil em algum momento próximo. Contudo, o que vai ocorrer, com certeza, é que o mundo vai passar por uma transição ecológica, climática e demográfica muito intensa durante os próximos 50 anos, com epidemias, fome, secas, catástrofes, guerras, invasões. Estamos vendo como as condições climáticas mudaram muito mais rápido do que pensávamos. E há grandes possibilidades de desastres, de perdas de colheitas, de crises alimentares. Neste meio tempo, hoje em dia, o Brasil até se beneficia, mas um dia a fatura irá chegar. Climatologistas, geofísicos, biólogos e ecologistas são profundamente pessimistas sobre o ritmo, as causas e consequências da transformação das condições ambientais em que se desenvolve a vida atual da espécie. Por que deveríamos ser otimistas?
Acredito que se deve insistir que é possível ser feliz sem ficar hipnotizado por este frenesi de consumo que os meios de comunicação impõem. Não sou contrário ao crescimento econômico no Brasil, não sou tão estúpido para pensar que tudo se resolveria mediante a distribuição do dinheiro de Eike Batista entre os agricultores do nordeste semiárido ou cortando os subsídios à classe política-mafiosa que governa o país. Não que não seja uma boa ideia. Sou contrário, isto sim, ao crescimento da “economia” do mundo, e sou a favor de uma redistribuição das taxas de crescimento. E também sou, obviamente, a favor de que todos possam comprar uma geladeira e, por que não, uma televisão. Sou a favor de uma maior utilização das tecnologias solar e eólica. E estaria encantado em deixar de dirigir o carro, se pudéssemos trocar este meio de transporte absurdo por soluções mais inteligentes.
E como vê os jovens neste contexto?
É muito difícil falar de uma geração a qual não se pertence. Nos anos 1960, tínhamos ideias confusas, mas ideais claros: pensávamos que poderíamos mudar o mundo e imaginávamos que tipo de mundo queríamos. Acredito que, em geral, os horizontes utópicos têm retrocedido enormemente.
Algum movimento recente no Brasil ou no mundo chamou a sua atenção?
No Brasil, a aceleração difusa do que poderíamos chamar de uma cultura “agro-sulista”, tanto da direita quanto da esquerda, pelo interior do país. Vejo isto como a consumação do projeto de branqueamento da nacionalidade, deste modo muito peculiar da elite governante no poder acertar as contas com seu próprio passado (passado?) escravista.
Outra mudança importante é a consolidação de uma cultura popular vinculada ao movimento evangélico popular. O evangelismo da Igreja Universal do Reino de Deus associa, por certo, a religião ao consumo.
O como você vê o surgimento das redes sociais, nesse contexto?
Essa é uma das poucas coisas a respeito das quais sou muito otimista: o relativo e progressivo enfraquecimento do controle total dos meios de comunicação de cinco ou seis conglomerados midiáticos. Esse enfraquecimento está muito vinculado à proliferação das redes sociais, que são grande novidade na sociedade brasileira e que estão contribuindo para que circule um tipo de informação que não tinha lugar na imprensa oficial. E estão habilitando formas, antes impossíveis, de mobilização. Há movimentos inteiramente produzidos pelas redes sociais, como a marcha contra a homofobia, o churrasco da “gente diferenciada”, os diversos movimentos contra Belo Monte, a mobilização pelas florestas.
As redes são nossa saída de emergência frente à aliança mortal entre o governo e os meios de comunicação. São um fator de desestabilização – no melhor sentido da palavra – do poder dominante. Se puder ocorrer alguma mudança importante na cena política, acredito que será através da mobilização pelas redes sociais.
E por isso se intensificam as tentativas de controlar estas redes, em todo o mundo, por parte do poder constituído. Contudo, controlar o acesso é um instrumento vergonhoso, como o caso do “projeto” da banda larga brasileira, que parte do reconhecimento de que o serviço será de baixa qualidade. Uma decisão tecnológica e política antidemocrática e antipopular, equivalente ao que se faz com a educação: impedir que a população tenha acesso pleno à circulação das produções culturais.
Parece, às vezes, que haveria uma conspiração para evitar que os brasileiros tenham uma boa educação e um acesso à Internet de qualidade. Essas duas coisas andam de mãos dadas e têm o mesmo efeito, que é o aumento da inteligência social que, diga-se de passagem, é necessário vigiar com muito cuidado.
Você imagina um novo modelo político?
Um amigo que trabalhava no Ministério do Meio Ambiente, na época de Marina Silva, criticava-me dizendo que meu discurso, feito à distância do Estado, era romântico e absurdo, que tínhamos que tomar o poder. Eu respondia que, se tomássemos o poder, tínhamos que, sobretudo, saber como mantê-lo depois, pois aí é que a coisa se complica. Não tenho um desenho, um projeto político para o Brasil, eu não pretendo saber o que é melhor para o povo brasileiro em geral, e em seu conjunto. Só posso expressar minhas preocupações e indignações, apenas aí é que me sinto seguro.
Penso, de qualquer forma, que se deve insistir na ideia de que o Brasil tem – ou a esta altura tinha – as condições geográficas, ecológicas, culturais para desenvolver um novo estilo de civilização, que não seja uma cópia empobrecida do modelo da América do Norte e da Europa. Poderíamos começar a experimentar, timidamente, algum tipo de alternativa aos paradigmas tecno-econômicos desenvolvidos na Europa moderna.
Todavia, imagino que se algum país do mundo irá fazer isso, esse país é a China. É certo que os chineses têm 5.000 anos de história cultural praticamente contínua e o que nós temos para oferecer são apenas 500 anos de dominação europeia e uma triste história de etnocídio, deliberado ou não. Ainda assim, é imperdoável a falta de inventividade da sociedade brasileira – ao menos de sua elite política e intelectual – que já perdeu várias ocasiões de gerar soluções socioculturais – tal como o povo brasileiro historicamente ofereceu – e articular, assim, uma civilização brasileira minimamente diferente da que propõem os comerciais de televisão.
Temos que mudar completamente e, primeiramente, a relação secularmente depredadora da sociedade nacional com a natureza, com a base físico-biológica de sua própria nacionalidade. Já é hora de começar uma nova relação com o consumo, menos ansioso e mais realista frente à situação de crise atual. A felicidade tem muitos outros caminhos.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Sonhos bons.




Quando eu era garotinha, meu pai e eu tínhamos um ritual noturno. 

Depois de eu recitar meus vinte e um Bismillahs e me acomodar na cama, 

ele sentava ao meu lado e extraía os sonhos ruins da minha cabeça com o polegar e o indicador. 

Os dedos passavam de minha testa às têmporas, com toda a paciência, procurando atrás das orelhas, 

em minha nuca, e ele fazia um som – pop, como uma garrafa sendo desarrolhada 

– para cada pesadelo que expurgava em meu cérebro. 

Guardava os sonhos ruins, um por um, num saco invisível no colo 

e amarrava o cordão bem apertado. 

Depois tateava o ar, procurando sonhos felizes para substituir aqueles que havia removido. 

Eu ficava olhando quando ele inclinava levemente a cabeça e franzia o cenho, 

os olhos viajando de um lado para o outro, como se ele se esforçasse para ouvir uma música distante.

Eu ouvia minha respiração, esperando o momento em que a expressão do meu pai 

se abriria num sorriso e ele cantarolaria: Ah, aqui está um, e estenderia as mãos

em concha para deixar o sonho pousar em suas palmas, como uma pétala caindo devagar de uma árvore. 

Então delicadamente, muito delicadamente – meu pai dizia que todas as coisas boas da vida são frágeis

e que podem ser perdidas com muita facilidade 

– ele lavava as mãos até meu rosto, esfregava as palmas em minha testa e a felicidade em minha cabeça.

Como o que eu vou sonhar esta noite, baba?


Eu perguntava. Ah, esta noite, bem, esta noite é um sonho especial, ele sempre dizia,

e inventava uma história na hora. Em um dos sonhos que me deu

eu me tornava a pintora mais famosa do mundo. 

Em outro, era a rainha de uma ilha encantada e tinha um trono voador.

Ele chegou a me dar até uma das minhas sobremesas preferidas, gelatina.

Eu tinha o poder, com um gesto de mão, de transformar qualquer coisa em gelatina.


O Silêncio das Montanhas – Khaled Hosseini

Além das noções de malfeito e bem-feito, existe uma ravina. Encontro você lá. 



(Jellaluddin Rumi – séculoXIII)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

PRECISAMOS DE MAIS AMBIÇÃO

http://tassoazevedo.blogspot.com.br/2013/12/precisamos-de-mais-ambicao.html

















Um dos temas-chave dos debates das últimas COPs (Conferência das Partes da Convenção sobre Mudanças Climáticas da ONU) e que deve perdurar até a COP21, em Paris, é a necessidade de aumentar o nível de ambição dos compromissos de mitigação das emissões de gases de efeito estufa (GEE) pelos países-membro de forma a fechar a lacuna entre as emissões projetadas para 2020 e os limites de emissões indicados pelo IPCC  para termos uma chance razoável de limitar o aumento da temperatura média do planeta em 2o C.
O Brasil tem sido um firme advogado da pressão sobre os países desenvolvidos para que aumentem significativamente o seu nível de ambição para redução das emissões até 2020. A liderança e a força moral do Brasil estão calcadas na significativa queda de suas emissões de GEE desde 2005, como consequência da queda do desmatamento e, especialmente, pelos compromissos voluntários assumidos entre 2008 e 2009 para mitigar emissões nos setores de energiaindústriaagropecuária e mudança de uso do solo. O nível de ambição do país vinha colocando pressão sobre os países desenvolvidos e outras economias emergentes.
Mas, uma série de sinais recentes aponta um cenário em mutação. Nossos resultados estão sendo refreados e o nível de ambição está sendo revisado, para baixo.
O desmatamento voltou a crescer em 2012/2013 na Amazônia (PRODES/INPE) e Mata Atlântica (SOS Mata Atlântica/INPE). Dados preliminares do LAPIG – Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento mostram a mesma tendência noCerrado. A criação de unidades de conservação, indicada por vários estudos independentes como um dos mais eficazes meios de evitar o desmatamento, não só foi praticamente paralisada no atual governo como se abriu uma frente de redução das áreas existentes para fins de estudos e implementação de projetos de infraestrutura.
Em novembro, os dados do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG) publicados pelo Observatório do Clima mostram profunda mudança no perfil das emissões brasileiras. As emissões por desmatamento – que chegaram a representar 2/3 das emissões, com queda nos últimos oito anos – em 2012, representaram menos de 1/3 das emissões. As emissões diretas da agropecuária e do setor de energia já representam quase 60% das emissões.
O crescimento das emissões do setor de energia acelerou e nos últimos anos e deve se tornar a principal fonte nos próximos anos, ultrapassando as emissões da agropecuária e de mudança de uso da terra. Um dos objetivos do plano nacional de mudanças climáticas, lançado em 2008, era aumentar em 11% o consumo de etanol até 2018. Em vez disso, entre 2008 e 2012, o consumo de etanol caiu mais de 20% e o consumo de gasolina disparou, estimulado por uma politica de subsidio implícito no controle de preços. A proporção de fontes renováveis em nossa matriz energética caiu de 45% para 42,3% entre 2009 e 2012, quando a meta apresentada em 2010, no Conselho de Politica Energética, era aumentar esta participação para 48% até 2020.
A geração de energia elétrica, que historicamente representou uma fração de cerca de 1% das emissões, chegou a quase 4% de participação em 2012, devido à necessidade de ligar termoelétricas de contingência por longos períodos. E, em 2013, órgãos reguladores do setor elétrico fizeram uma séria de movimentos para viabilizar termoelétrica de carvão mineral como parte da base do sistema elétrico.
Estes sinais dão pistas do que pode ter provocado um nível de ambição tão baixo na proposta de atualização do Plano Nacional de Mudanças Climáticas, colocado em consulta publica nos meses de outubro e novembro pelo governo federal. Como já comentado, neste blog, a proposta de atualização produziu documento com muitas palavras, mas pouca reflexão sobre a evolução no cenário brasileiro de emissões. As metas de mitigação de emissões foram revisadas para baixo, retrocedendo em relação ao documento original publicado em 2008.
No momento em que cobramos, com razão, um aumento de ambição dos países desenvolvidos em relação a seus compromissos de redução de emissões, até 2020 e para o período posterior, não podemos retroceder em nossos compromissos. Pelo contrário, temos que ser muito mais ambiciosos, dentro de nossas possibilidades, para liderar pelo exemplo.
Precisamos reverter este quadro em 2014, recuperando e reforçando as politicas públicas orientadas para mitigação das emissões, buscando não só cumprir as metas estabelecidas em 2008, como reforçá-las e aprofundá-las. Este processo pode começar com uma profunda revisão da proposta de atualização do Plano Nacional de Mudanças Climáticas de forma que ele represente um claro aumento da ambição brasileira para contribuir para mitigação das emissões globais de gases de efeito estufa.
Devido aos graves impactos que as mudanças climáticas podem trazer para o Brasil, conforme indicado pelo recente relatório do Painel Brasileiro sobre Mudanças Climáticas (RAN1), este aumento do nível de ambição é do mais legítimo interesse nacional.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Por que o amor é a única maneira de ser feliz.


O jeito que os alemães encontraram para explicar a homossexualidade para crianças

Posted by Italo Eduardo Volpato Calizotti  |  Tagged as: A homossexualidade esta cada vez mais comum em nossa sociedade e com o aumento da homossexualidade, vem junto o aumento do preconceito e a não aceitação de boa parte da sociedade, querendo ou não uma hora esse assunto vai aparecer na sua família e vocês precisam saber como abordar este tema, todos somos livres para escolher nossa opção sexual , assim tmb como não devemos satisfação a ninguém, uma revista alemão criou uma historia em quadrinhos para abordar o tema da homossexualidade nas escolas e explicar de uma vez por todas esse tema de forma direta, eles abordaram de forma clara e sem nenhum tipo de preconceito, tanto que outros países já importaram essas cartilhas , falta chegar aqui no brasil para que possa acabar de uma vez com o preconceito , o que vocês acharam do modo em que eles abordaram esse tema tão polemico na sociedade? 








segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Urbanização incompleta - estratégia do capital.

29/11/2013 15:54:08

"Urbanização incompleta é estratégia do capital"

Camila Nobrega e Rogério Daflon, do Canal Ibase
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Com a usual camisa vermelha, o sorriso miúdo e uma calma que contrasta com sua densa teoria crítica, o geógrafo britânico marxista David Harvey se preparava para uma palestra que lotaria neste sábado (23/11) o Teatro Rival, no Centro do Rio de Janeiro. Considerado um dos maiores pensadores da atualidade, ele recebeu o Canal Ibase uma hora antes do início de sua fala e não deixou pergunta alguma sem resposta.
Harvey, que está no Brasil para o lançamento do livro “Os limites do capital” em português, pela Boitempo, desafia o coro dos contentes sem qualquer bravata. Age assim porque vê um mundo com cada vez menos gente satisfeita com os rumos do capitalismo. Sem palavras de ordem e dispensando clichês, o geógrafo diz que há uma atmosfera para se criar um grande movimento anticapitalista. Ele vislumbra uma convergência entre os protestos no Brasil, a revolta da Praça Tahrir (Egito) e outras manifestações internacionais : “Atualmente, quando um presidente diz ‘o país está indo muito bem’, ele quer dizer que o capital está indo bem, mas as pessoas estão indo mal.” Nesta entrevista, Harvey explica o porquê de tanta insatisfação.
Canal Ibase - Com os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo, nunca foi tão caro morar no Rio de Janeiro. E isso está impactando a renda de todas as classes sociais na metrópole. Mas é claro que as classes mais pobres são as mais prejudicadas. Qual serão, na sua opinião, as consequências dessa segregação?
David Harvey - O interesse que o capital tem na construção da cidade é semelhante à lógica de uma empresa que visa ao lucro. Isso foi um aspecto importante no surgimento do capitalismo. E continua a ser. Após Segunda Guerra, por exemplo, os Estados Unidos construíram os subúrbios de uma maneira muito rentável. O que temos visto, nos últimos 30 anos, é a reocupação da maioria dos centros urbanos com megaprojetos. Muitos desses projetos associam a urbanização ao espetáculo. E fazem um retorno à descrição de Guy Debord sobre a sociedade do espetáculo. Faz todo sentido na diretriz da realização dos megaeventos como as Olimpíadas e a Copa do Mundo. O capital precisa que o estado assegure essa dinâmica. Assim, pode usar esses eventos como instrumentos de investimentos e mais lucratividade. Invariavelmente, entre as consequências dos megaeventos estão as remoções de pessoas de algumas áreas. Eles dependem disso para serem realizados. E essa situação tem causado revolta. De um lado, o capital vai muito bem, mas as pessoas vão mal. Há alguma geração de empregos, em função dos megaprojetos e megaeventos, mas o que se vê é o desvio da verba pública para apoiar essas empreitadas. Ao redor do mundo, tem havido muitos protestos devido à retirada de pessoas de suas residências. As populações percebem que o dinheiro dos impostos está indo para esses fins, em detrimento da construção de escolas e hospitais. Este é um contexto que ilustra como o capital gosta de construir as cidades, à diferença do que é a cidade em que as pessoas podem viver bem. Há um abismo entre essas duas propostas. Essa é a grande briga, porque enquanto o capitalismo quer desempoderar pessoas, a fim de reproduzir a si próprio, elas querem verbas para outras coisas. O grande problema é que a tendência é a dominação do capital sobre o poder político nas cidades. O financiamento das campanhas políticas é um instrumento para que isso aconteça. Trata-se de controle sobre a representação política. Essa lógica tem ocorrido em vários lugares do mundo, não só na viabilização de megaeventos no Brasil. Trata-se de um processo padrão. Remete à Coréia do Sul, em Seul (Olimpíadas de 1988). E também à Grécia. Se pensarmos na Grécia hoje, um país que sediou as Olimpíadas (Atenas, em 2004), vemos que esses eventos não costumam trazer grandes benefícios econômicos. O país está numa profunda crise econômica. Há grandes estádios construídos mas, a longo prazo, essas edificações gigantes não trazem vantagens para o país.
Canal Ibase - Mas, e quanto à Barcelona, que aqui no Brasil é um dos exemplos mais disseminados como uma cidade que aproveitou muito bem um megaevento?
Harve - Bem, eu acho que Barcelona era uma excelente cidade antes das Olimpíadas (de 1992). Eu nem gosto de voltar muito lá. Costumo dizer que o ápice da cidade foi antes das Olimpíadas. Depois disso, foi ladeira abaixo.
Canal Ibase - Na África do Sul, muitas pessoas foram expulsas de suas casas devido às obras relacionadas à Copa do Mundo…
Harvey - Exatamente. O problema das remoções tem sido recorrente. Há muita luta em torno disso. Isso é típico. Se há pessoas pobres vivendo em terras muito valorizadas, há uma tentativa de tirá-las de lá. Uma forma de levar isso a cabo é o aumento do custo de vida. Os megaprojetos também são uma excelente desculpa.
Canal Ibase - Qual é sua reflexão sobre o papel do grandes veículos de comunicação na lógica de acumulação do capital nas intervenções urbanas?
Harvey - Claramente, o controle da mídia é uma ameaça para a democracia popular. A questão é como se faz uma cobertura e o que é coberto. Os jornalistas que querem cobrir os acontecimentos de uma forma mais real têm vivido tempos difíceis. É uma luta pela liberdade de expressão. O caminho passa pela mídia alternativa, e a tecnologia, com a internet, abre possibilidades. O problema é que a mídia alternativa pode ser absorvida e disciplinada pelo mercado. É uma disputa que está sendo travada. Mas é importante lembrar que vivemos sob monopólios dos meios de comunicação no mundo. A desinformação pode ser espalhada tão facilmente como a informação. E há monopólio inclusive nas mídias sociais. Ainda há muitas perguntas a serem respondidas sobre o papel das mídias sociais e sua diferença em relação às mídias convencionais.
Canal Ibase - As obras de urbanização nas favelas do Rio têm como característica a falta de diálogo com as populações e a descontinuidade dessas intervenções. Ocorreu com um projeto chamado Favela Bairro e agora se repete com um Programa de Aceleração do Crescimento. Nota-se o desinteresse do poder público de oferecer os mesmos serviços da cidade sem que haja gentrificação, embora as grandes construtoras estejam sempre presentes nessas obras. Para não legitimar a permanência dos moradores de favelas, as obras são interrompidas sempre. Qual a avaliação do senhor sobre isso?
Harvey - Se há populações de baixa renda em terras de alto valor, uma das estratégias é dar títulos de propriedade aos moradores dessas áreas, sob o argumento da regularização fundiária e da garantia da moradia. Não sei como isso ocorre no Brasil, mas um dos projetos em favelas, periferias e outras áreas pobres tem sido essa concessão de títulos de propriedades. Porque propriedade o capital pode comprar. Assim começa um processo de reocupação dessas áreas e sua consequente gentrificação. Por outro lado, uma forma de manter os preços baixos em determinadas comunidades é ter projetos incompletos. Então, o estado oferece intervenções, mas não as termina. E, desse jeito, os moradores vendem a terra a um preço baixo e saem do local. Quando a oferta chega, a infraestrutura ainda não está lá. Essa estratégica é típica nos Estados Unidos, onde se compram propriedades e as levam à decadência forçadamente. Desse jeito, desvalorizam um bairro inteiro e, num período de dez anos, é possível reocupá-lo comprando propriedades no entorno. Como o estado está envolvido nisso? Depende de lugar para lugar. Às vezes, o estado é apenas incompetente e não sabe o que está fazendo. Nesse caso, o estado pode começar uma obra e simplesmente parar no meio. Não necessariamente é uma estratégia deliberada. Mas em alguns casos é. E responde aos interesses privados. Nesses casos, há de fato uma estratégia quando uma empresa quer atuar em determinado lugar. E se decide começar uma obra já sabendo que não vai terminá-la. Ao não se terminarem projetos de infraestrutura, abre-se caminho para a chegada das empresas privadas.
Canal Ibase - No Brasil, o estado tem feito alianças com transnacionais, que têm usado e abusado do territórios brasileiro, nas zonas urbanas e rurais. Um dos setores onde isso é mais grave é a mineração. sobretudo no que diz respeito à mineração. Como a sociedade civil pode reagir a isso?
Harvey - O principal jeito de reagir é por meio de protestos. Eu fico abismado que países como o Brasil ainda abram mão de seus recursos naturais para multinacionais. E há outras formas de exploração, como é o caso das plantações de soja. Empresas como a norte-americana Monsanto (líder mundial de venda de sementes transgênicas e agrotóxico) e outras líderes do agronegócio tomam conta de territórios. A terra no Brasil vem sendo constantemente degradada por esse processo. E o ciclo é maior. É preciso lembrar que o principal mercado do agronegócio brasileiro é a China. De um lado, são os Estados Unidos vendendo a semente e o agrotóxico e, de outro, a China comprando. Um problema que se agrava é o controle chinês de terras na América Latina.
Canal Ibase - O geógrafo brasileiro Milton Santos tem uma frase que diz: “A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos que apenas conseguem enxergar o que os separa e não o que os une”. O senhor tem falado sobre a divisão da esquerda no mundo, da fragmentação dos movimentos sociais. Para a criação de um movimento anticapitalista, quais são os elementos invisíveis que perpassam todos os movimentos? O que liga a preservação do meio ambiente, a luta das mulheres por autonomia e o direito à cidade, por exemplo?
Harvey - Eu conheço Milton Santos, especialmente o dos anos 1970. Depois disso, ele se tornou muito pró-franceses. E ele não gostava de norte-americanos (risos; Harvey leciona na Universidade da Cidade de Nova York). Se eu tivesse a resposta para essa pergunta, poderíamos ter começado a revolução. Mas não tenho uma boa resposta. É importante ter alianças que cruzem movimentos ambientalistas, o feminismo, assim como juntar organizações que trabalham por questões como a da moradia ou questões étnicas. Mas às vezes divergências tolas quebram essas alianças. Na minha opinião, precisamos definir o que é anticapitalismo. Não há razão para ser anticapitalista, se você acha que o capitalismo está fazendo um bom trabalho. Mas, se você não acha…Uma das coisas que eu tenho discutido com amigos da esquerda é esse conceito de anticapitalismo. Há opiniões que afirmam que o capitalismo fez um trabalho melhor que o comunismo e o socialismo. No entanto, o que está acontecendo agora é um processo violento. Se queremos mudar, temos muito trabalho a fazer. Não há muita gente na mídia interessada no que nós fazemos. Não somos um grupo muito poderoso, nem temos popularidade. É importante, entretanto, fazer esse grupo crescer, explicando às pessoas por que é importante ser anticapitalista.
(Na palestra ministrada logo em seguida à entrevista ao Canal Ibase, Harvey complementou esse raciocínio: “Estamos em um mundo em que o neoliberalismo está ficando enraizado. Se a pessoa vai mal, a culpa é dela, e não do sistema. Ah!, e só para lembrar: é também você o responsável por pagar sua educação. Eu sempre estudei em instituições públicas até o doutorado. Hoje em dia, isso não é possível nem na Inglaterra nem nos Estados Unidos. O movimento anticapitalista poderia visar a algumas vitórias, como tornar novamente públicos o transporte, a saúde e a educação. O que estou tentando dizer é que, se você é pobre ou tem dificuldades de acesso a serviços, você é um produto do sistema; a culpa não é sua. E só há como mudar isso mudando o sistema. Em que sociedade você quer viver? Na sociedade em que a educação é com base no valor de uso ou no valor de troca?”, disse o geógrafo, fazendo a oposição por meio desses dois conceitos marxistas)
Canal Ibase - Movimentos sociais já contabilizam 100 mil pessoas removidas de suas casas apenas no Rio de Janeiro, para realização de obras em função dos megaeventos. Que forças do capitalismo levam, mesmo após os protestos que ocorreram no país inteiro, à manutenção desta alteração brutal no território?
Harvey - Como falamos anteriormente, o capitalismo depende de uma dinâmica maior. Mas precisamos redefinir coisas. Moradia não pode ser vista como commodity. A questão central é descobrir se você quer uma cidade para as pessoas ou para o lucro. Para construir uma cidade diferente, é preciso ser anticapitalista. Não há outra forma.
(Brasil de Fato/Canal Ibase)