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sábado, 22 de dezembro de 2012

Niemeyer, a arquitetura da destruição


Uma opinião esperta, desperta e consciente.
20 de dezembro de 2012 | 2h 08
DEMÉTRIO MAGNOLI
Num documentário dos anos 1920, pode-se ver Le Corbusier esfregando um lápis preto grosso sobre uma vasta área do mapa do centro de Paris, "com o entusiasmo do Bombardeiro Harris planejando a aniquilação de uma cidade alemã na Segunda Guerra Mundial", escreveu Theodore Dalrymple num saboroso artigo no City Journal. O célebre arquiteto esquematizava a fantasia totalitária do Plano Voisin, uma coleção geométrica de 18 torres de escritórios cruciformes de 60 andares, completadas por conjuntos habitacionais delimitando superquadras. Você pode gostar do Palácio Capanema (eu gosto), da Catedral de Brasília (adoro), do Itamaraty (é lindo), da sede do PCF (não gosto) e até do Memorial da América Latina (detesto) ou do MAC de Niterói (acho ridículo), mas não tem o direito intelectual de separar a obra de Oscar Niemeyer de suas raízes doutrinárias. Niemeyer inscreve-se na matriz de Le Corbusier, o fundador de uma arquitetura da destruição que, consagrada à estética do poder, odeia a história, o espaço público e as pessoas comuns.
Certamente Niemeyer não é um simples epígono de Le Corbusier, com suas "grandes caixas sobre varetas" (Frank Lloyd Wright), uma "marca registrada vulgar da forma moderna" (Lewis Mumford). O brasileiro foi um inventor: seu traço curvou sinuosamente o concreto, tropicalizando a arquitetura moderna. Contudo suas estratégias compositivas e seu repertório fechado de formas não derivam de supostas inspirações renascentistas ou barrocas, mas dos princípios neoclássicos, que são os de Le Corbusier. Para além disso, Niemeyer compartilhou com seu mestre a crença fundamental na "missão civilizatória" do Estado - isto é, no privilégio estatal de mobilizar ilimitadamente a terra urbana para esculpir a cidade (e a sociedade) segundo os ideais da elite dirigente. Os dois arquitetos solicitam o patrocínio de tiranos - ou melhor, de tiranos com uma Visão.
Na imprensa brasileira, a morte de Niemeyer foi acompanhada por dois tipos predominantes de avaliações. De um lado, afirmou-se que sua obra é genial, pois reflete seu "pensamento humanista" - uma opinião abominável, mas coerente. De outro, afirmou-se que sua obra, genial, deve ser separada de suas deploráveis convicções políticas - um diagnóstico incoerente e inconsequente. A arquitetura de Niemeyer, como a de Le Corbusier, não é apenas uma derivação de suas inclinações ideológicas, mas também uma plataforma para sua desejada aliança entre os arquitetos e o poder político. Le Corbusier serviu tanto a Stalin quanto ao regime colaboracionista de Vichy. "A França precisa de um Pai", clamou o arquiteto pouco antes da publicação de A Cidade Radiosa, em cujo frontispício se lia: "Este livro é dedicado à Autoridade". Eis a chave para decifrar as suas obras - e as de Niemeyer.
A Piazza della Signoria, que não tem nenhuma árvore, é uma maravilha do espírito humano. Não é preciso reproduzir a crítica romântica, que condena o "concreto" e exige o "verde", nem é necessário aderir aos princípios da arquitetura orgânica para repudiar o monumentalismo brutal dos sacerdotes do Templo Moderno. "O plano deve governar. A rua deve desaparecer", escreveu Le Corbusier em 1924, indicando o rumo que seria adotado por Niemeyer. O impulso destrutivo está contido em cada uma das intervenções arquitetônicas de ambos, inclusive nas mais belas.
Uma edificação de Niemeyer jamais se relaciona significativa ou funcionalmente ao entorno construído, que ele despreza, pois não emergiu de seu traço. Os espaços residuais entre volumes projetados pelo arquiteto nunca adquirem identidade e servem somente para a contemplação de seus monumentos à Autoridade. Quanto maior é a escala do projeto, mais evidente se torna a "modernidade anacrônica" de Niemeyer. "O papel ordenador do espaço aberto, com suas ruas, praças, pontos de encontro e mercados", dilui-se, em Brasília, "num espaço sem limites e sem outra função que a de emoldurar edifícios isolados e esculturais" (J. C. Durand & E. Salvatori).
A estética de Niemeyer é uma declaração política. Em Brasília, como registrou James Holston, o contraste tipológico entre os edifícios públicos, "objetos excepcionais, figurais, de cunho monumental", e os edifícios residenciais, "objetos seriais, repetidos, que são cotidianos", representa a utopia regressiva almejada pelo arquiteto. Tinha razão Alberto Moravia quando escreveu para um jornal italiano que a capital recém-inaugurada fazia as pessoas se sentirem "como os minúsculos habitantes de Lilliput" e procurarem "no céu vazio a forma ameaçadora de um novo Gulliver".
"Nunca escondi minha posição de comunista. Os governantes compreensivos, que me convocam como arquiteto, sabem da minha posição ideológica. Pensam que sou um equivocado e eu deles penso a mesma coisa", escreveu Niemeyer, num exercício de cínico ilusionismo. Você sabe qual é a espessura média de concreto por metro quadrado no Memorial da América Latina? 
Nenhum "governante compreensivo" se equivoca ao convocar o "arquiteto comunista" cujos projetos oferecem as melhores oportunidades no jogo do superfaturamento de obras públicas.
Vivemos em tempos de ressurgimento de um verde-amarelismo satisfeito, balofo e triunfalista. Felipão, Lula, Eike Batista, José Sarney cristalizaram-se como patrimônios da nacionalidade. Na hora da morte de Niemeyer, uma gosma indiferenciada de bajulação asfixiou o debate público e as páginas dos jornais se fecharam à diversificada crítica à arquitetura totalitária formulada por urbanistas, arquitetos, sociólogos, antropólogos e filósofos. 
A discussão, tão necessária, sobre a cidade e a história, o Estado e a sociedade, a forma moderna e a vida urbana foi interditado pelo coro ruidoso das sentenças ornamentais do senso comum. "Brasil, ame-o ou deixe-o": quanto demorará para alguma estatal restaurar o slogan de Emílio Médici?
* SOCIÓLOGO E DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP
E-MAIL: 
DEMETRIO.MAGNOLI@UOL.COM.BR

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O comunismo ético e humanitário de Oscar Niemeyer


Leonardo Boff

07/12/2012
Não tive muitos encontros com Oscar Niemeyer. Mas os que tive foram longos e densos. Que falaria um arquiteto com um teólogo senão sobre Deus, sobre religião, sobre a injustiça dos pobres e sobre o sentido da vida?

Nas nossas conversas, sentia alguém com uma profunda saudade de Deus. Invejava-me que, me tendo por inteligente (na opinião dele) ainda assim acreditava em Deus, coisa que ele não conseguia. Mas eu o tranquilizava ao dizer: o importante não é crer ou não crer em Deus. Mas viver com ética, amor, solidariedade e compaixão pelos que mais sofrem. Pois, na tarde da vida, o que conta mesmo são tais coisas. E nesse ponto ele estava muito bem colocado. Seu olhar se perdia ao longe, com leve brilho.

Impressionou-se sobremaneira, certa feita, quando lhe disse a frase de um teólogo medieval: “Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe”. E ele retrucou: “mas que significa isso?” Eu respondi: “Deus não é um objeto que pode ser encontrado por ai; se assim fosse, ele seria uma parte do mundo e não Deus”. Mas então, perguntou ele: “que raio é esse Deus?” E eu, quase sussurrando, disse-lhe: “É uma espécie de Energia poderosa e amorosa que cria as condições para que as coisas possam existir; é mais ou menos como o olho: ele vê tudo mas não pode ver a si mesmo; ou como o pensamento: a força pela qual o pensamento pensa, não pode ser pensada”. E ele ficou pensativo. Mas continuou: “a teologia cristã diz isso?” Eu respondi: “diz mas tem vergonha de dizê-lo, porque então deveria antes calar que falar; e vive falando, especialmente os Papas”. Mas consolei-o com uma frase atribuída a Jorge Luis Borges, o grande argentino:”A teologia é uma ciência curiosa: nela tudo é verdadeiro, porque tudo é inventado”. Achou muita graça. Mais graça achou com uma bela trouvaille de um gari do Rio, o famoso “Gari Sorriso: “Deus é o vento e a lua; é a dinâmica do crescer; é aplaudir quem sobe e aparar quem desce”. Desconfio que Oscar não teria dificuldade de aceitar esse Deus tão humano e tão próximo a nós.

Mas sorriu com suavidade. E eu aproveitei para dizer: “Não é a mesma coisa com sua arquitetura? Nela tudo é bonito e simples, não porque é racional mas porque tudo é inventado e fruto da imaginação”. Nisso ele concordou adiantando que na arquitetura se inspira mais lendo poesia, romance e ficção do que se entregando a elucubrações intelectuais. E eu ponderei: “na religião é mais ou menos a mesma coisa: a grandeza da religião é a fantasia, a capacidade utópica de projetar reinos de justiça e céus de felicidade. E grande pensadores modernos da religião como Bloch, Goldman, Durkheim, Rubem Alves e outros não dizem outra coisa: o nosso equívoco foi colocar a religião na razão quando o seu nicho natural se encontra no imaginário e no princípio esperança. Ai ela mostra a sua verdade. E nos pode inspirar um sentido de vida.”
Para mim a grandeza de Oscar Niemeyer não reside apenas na sua genialidade, reconhecida e louvada no mundo inteiro. Mas na sua concepção da vida e da profundidade de seu comunismo. Para ele “a vida é um sopro”, leve e passageiro. Mas um sopro vivido com plena inteireza. Antes de mais nada, a vida para ele não era puro desfrute, mas criatividade e trabalho. Trabalhou até o fim, como Picazzo, produzindo mais de 600 obras. Mas como era inteiro, cultivava as artes, a literatura e as ciências. Ultimamente se pôs a estudar cosmologia e física quântica. Enchia-se de admiração e de espanto diante da grandeur do universo.

Mas mais que tudo cultivou a amizade, a solidariedade e a benquerença para com todos. “O importante não é a arquitetura” repetia muitas vezes, “o importante é a vida”. Mas não qualquer vida; a vida vivida na busca da transformação necessária que supere as injustiças contra os pobres, que melhore esse mundo perverso, vida que se traduza em solidariedade e amizade. No JB de 21/04/2007 confessou: ”O fundamental é reconhecer que a vida é injusta e só de mãos dadas, como irmãos e irmãs, podemos vive-la melhor”.
Seu comunismo está muito próximo daquele dos primeiros cristãos, referido nos Atos dos Apóstolos nos capítulos 2 e 4. Ai se diz que “os cristãos colocavam tudo em comum e que não havia pobres entre eles”. Portanto, não era um comunismo ideológico mas ético e humanitário: compartilhar, viver com sobriedade, como sempre viveu, despojar-se do dinheiro e ajudar a quem precisasse. Tudo deveria ser comum. Perguntado por um jornalista se aceitaria a pílula da eterna juventude, respondeu coerentemente: “aceitaria se fosse para todo mundo; não quero a imortalidade só para mim”.

Um fato ficou-me inesquecível. Ocorreu nos inícios dos anos 80 do século passado. Estando Oscar em Petrópolis, me convidou para almoçar com ele. Eu havia chegado naquele dia de Cuba, onde, com Frei Betto, durante anos dialogávamos com os vários escalões do governo (sempre vigiados pelo SNI), a pedido de Fidel Castro, para ver se os tirávamos da concepção dogmática e rígida do marxismo soviético. Eram tempos tranquilos em Cuba que, com o apoio da União Soviética, podia levar avante seus esplêndidos projetos de saúde, de educação e de cultura. Contei que, por todos os lados que tinha ido em Cuba, nunca encontrei favelas mas uma pobreza digna e operosa. Contei mil coisas de Cuba que, segundo frei Betto, na época era “uma Bahia que deu certo”. Seus olhos brilhavam. Quase não comia. Enchia-se de entusiasmo ao ver que, em algum lugar do mundo, seu sonho de comunismo poderia, pelo menos em parte, ganhar corpo e ser bom para as maiorias.

Qual não foi o meu espanto quando, dois dias após, apareceu na Folha de São Paulo, um artigo dele com um belo desenho de três montanhas, com uma cruz em cima. Em certa altura dizia: “Descendo a serra de Petrópolis ao Rio, eu que sou ateu, rezava para o Deus de Frei Boff para que aquela situação do povo cubano pudesse um dia se realizar no Brasil”. Essa era a generosidade cálida, suave e radicalmente humana de Oscar Niemeyer.

Guardo uma memória perene dele. Adquiri de Darcy Ribeiro, de quem Oscar era amigo-irmão, uma pequeno apartamento no bairro do Alto da Boa-Vista, no Vale Encantando. De lá se avista toda a Barra da Tijuca até o fim do Recreio dos Bandeirantes. Oscar reformou aquele apartamento para o seu amigo, de tal forma que de qualquer lugar que estivesse, Darcy (que era pequeno de estatura), pudesse ver sempre o mar. Fez um estrado de uns 50 centrímetros de altura E como não podia deixar de ser, com uma bela curva de canto, qual onda do mar ou corpo da mulher amada. Ai me recolho quando quero escrever e meditar um pouco, pois um teólogo deve cuidar também de salvar a sua alma.

Por duas vezes se ofereceu para fazer uma maquete de igrejinha para o sítio onde moro em Araras em Petrópolis. Relutei, pois considerava injusto valorizar minha propriedade com uma peça de um gênio como Oscar. Finalmente, Deus não está nem no céu nem na terra, está lá onde as portas da casa estão abertas.
A vida não está destinada a desaparecer na morte mas a se transfigurar alquimicamente através da morte. Oscar Niemeyer apenas passou para o outro lado da vida, para o lado invisível. Mas o invisível faz parte do visível. Por isso ele não está ausente, mas está presente, apenas invisível. Mas sempre com a mesma doçura, suavidade, amizade, solidariedade e amorosidade que permanentemente o caracterizaram. E de lá onde estiver, estará fantasiando, projetando e criando mundos belos, curvos e cheios de leveza.