Transcrevo ( recebida dos amigos João Carvalho e Carlos Hermes) a
ENTREVISTA DO MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO, DO STF, DADA À ´FOLHA´.
Folha - Quando foi sua iniciação no campo da meditação?
Carlos Ayres Britto - De uns 20 anos para cá, tanto a meditação quanto o cardápio vegetariano. Eu tinha em torno de 50 anos, um pouco antes, até.
Carlos Ayres Britto - De uns 20 anos para cá, tanto a meditação quanto o cardápio vegetariano. Eu tinha em torno de 50 anos, um pouco antes, até.
Como o sr. se converteu?
Eu recebi influências positivas, de, por exemplo, [Jiddu] Krishnamurti [1895-1986, guru indiano], Osho [Rajneesh, 1931-90, místico indiano], Eva Pierrakos [1915-79, médium austríaca], Eckhart Tolle [pseudônimo de Urich Leonard Tolle, escritor espiritualista nascido em 1948], autor do livro "O Poder do Agora", e a pessoa que mais me influenciou, Heráclito [de Éfeso, c. 540--c. 480 a.C., pré-socrático que elegeu o fogo e a permanente transformação como princípio da ordem universal].
Eu recebi influências positivas, de, por exemplo, [Jiddu] Krishnamurti [1895-1986, guru indiano], Osho [Rajneesh, 1931-90, místico indiano], Eva Pierrakos [1915-79, médium austríaca], Eckhart Tolle [pseudônimo de Urich Leonard Tolle, escritor espiritualista nascido em 1948], autor do livro "O Poder do Agora", e a pessoa que mais me influenciou, Heráclito [de Éfeso, c. 540--c. 480 a.C., pré-socrático que elegeu o fogo e a permanente transformação como princípio da ordem universal].
Depois, de uns 12 anos para cá, comecei a me interessar por física
quântica, e ela me pareceu uma confirmação de tudo o que os
espiritualistas afirmam. A física quântica, sobretudo os escritos de
Dannah Zohar [especializada em aconselhamento espiritual e
profissional]. Venho lendo os livros dessa mulher, uma americana que
escreveu uma trilogia maravilhosa: "O Ser Quântico", "A Sociedade
Quântica" e "QS -- Inteligência Espiritual". Também passei a me
interessar muito por neurociência.
O sr. tinha religião?
Católica, só que, de 20 anos para cá, me tornei um espiritualista.
Católica, só que, de 20 anos para cá, me tornei um espiritualista.
Houve um momento de transformação?
Foi meio gradativo. Fui abolindo carne, depois abolindo frango, depois aboli peixe.
Foi meio gradativo. Fui abolindo carne, depois abolindo frango, depois aboli peixe.
Há países que reconhecem em suas leis os direitos dos animais de forma mais abrangente. Podemos chegar a isso?
É possível que haja uma consciência maior. Pelo menos nas técnicas de abate, mais humanizadas, isso já se observa hoje em dia. Por exemplo, vocês sabem que os frangos são criados sobre um tratamento hormonal intenso e sem possibilidade de dormir? Uma luz acesa em cima dele para ele ficar acordado, o frango de granja? Isso é de uma violência...
É possível que haja uma consciência maior. Pelo menos nas técnicas de abate, mais humanizadas, isso já se observa hoje em dia. Por exemplo, vocês sabem que os frangos são criados sobre um tratamento hormonal intenso e sem possibilidade de dormir? Uma luz acesa em cima dele para ele ficar acordado, o frango de granja? Isso é de uma violência...
O sr. condena a forma como o gado é abatido?
Condeno. Tudo. Vou dizer uma coisa, é uma observação minha, não falei em lugar nenhum. Sou contemplativo. Não confundir atenção com contemplação. Atenção é um foco, uma centralização do sentido tão intensa, que o mais das vezes resvala para a tensão. A tensão está muito próxima da atenção. Eu sou um contemplativo, porque na contemplação você concilia atenção e descontração. Isso é fato. Quando você é contemplativo, você contempla essa água, o copo antes de beber. O toque da sua mão no cristal. Eu estou acordado, como quem está atento. Mas estou descontraído, como quem está dormindo.
Condeno. Tudo. Vou dizer uma coisa, é uma observação minha, não falei em lugar nenhum. Sou contemplativo. Não confundir atenção com contemplação. Atenção é um foco, uma centralização do sentido tão intensa, que o mais das vezes resvala para a tensão. A tensão está muito próxima da atenção. Eu sou um contemplativo, porque na contemplação você concilia atenção e descontração. Isso é fato. Quando você é contemplativo, você contempla essa água, o copo antes de beber. O toque da sua mão no cristal. Eu estou acordado, como quem está atento. Mas estou descontraído, como quem está dormindo.
Então, contemplação é isso, é a conciliação entre a atenção e a
distração. É impressionante. É um descarrego, um êxtase. Como vivo em
estado contemplativo, eu observo coisas interessantíssimas. Uma dessas
coisas é que nenhum pássaro carnívoro canta. Nunca vi ninguém dizer
isso.
Os pássaros carnívoros, corujas, águias, falcões, ou crocitam ou
piam, ou grasnam, nenhum canta, como se a natureza dissesse: só tem
direito de cantar se for herbívoro. E todos os animais herbívoros, mesmo
os mastodontes, elefantes, por exemplo, nenhum agride. Eles não são
ativos nem pró-ativos na agressão, são reativos. No olhar de um
herbívoro não tem chispa, não tem estresse. Todos os carnívoros são
estressados no olhar, todos.
Assim se dá com o ser humano?
Assim se dá com o ser humano.
Assim se dá com o ser humano.
Por que houve tamanha tensão entre o relator Joaquim Barbosa e o revisor Ricardo Lewandowski?
[Se responder] eu vou dar uma de psicólogo, prefiro ficar na objetividade. Eu quero deixar claro: fui presidente, mantive a taxa de cordialidade.
[Se responder] eu vou dar uma de psicólogo, prefiro ficar na objetividade. Eu quero deixar claro: fui presidente, mantive a taxa de cordialidade.
O ego prevaleceu no julgamento?
Não subscrevo suas palavras, de que foi o ego que deu as cartas.
Não subscrevo suas palavras, de que foi o ego que deu as cartas.
Não digo que pautou, mas que se manifestou em vários momentos.
Os ministros do Supremo são seres humanos, suscetíveis a influências, a percalços existenciais. Ora sabemos administrar esses percalços com o consciente emocional no ponto, ora ele baixa um pouco de patamar.
Os ministros do Supremo são seres humanos, suscetíveis a influências, a percalços existenciais. Ora sabemos administrar esses percalços com o consciente emocional no ponto, ora ele baixa um pouco de patamar.
Mas não houve impasse, não houve pane. Tudo foi administrável. E
não precisei, em nenhum momento, suspender a sessão para ver os ânimos
refluírem. Quanto à questão de ego, ele prejudica a atuação não só de
ministros do Supremo, mas de todo ser humano.
Quando Sartre disse que o inferno é o outro, ele quis dizer que o
outro, com sua diversidade, a sua mundividência, seu peculiar modo de
conceber e praticar a vida, afeta o nosso ego. Então, podemos traduzir
as palavras dele como "o inferno é outro" ou como "o inferno é o ego".
Tenho dito para mim mesmo que, sem o eclipse do ego, ninguém se ilumina.
Como o sr. definiria a atuação do Ministério Público e a do relator Joaquim Barbosa no julgamento?
Acho que a história vai registrar que [Roberto] Gurgel e Joaquim Barbosa foram médicos-legistas na autópsia dos fatos delituosos. Eles tiveram merecimento extraordinário para reconstituir com fidedignidade os fatos em sua materialidade. E o "link" entre esses fatos e respectivos autores e partícipes.
Acho que a história vai registrar que [Roberto] Gurgel e Joaquim Barbosa foram médicos-legistas na autópsia dos fatos delituosos. Eles tiveram merecimento extraordinário para reconstituir com fidedignidade os fatos em sua materialidade. E o "link" entre esses fatos e respectivos autores e partícipes.
Eu só vejo por esse prisma técnico. Joaquim Barbosa, transido de
dor [nas costas], um homem "baleado", em linguagem coloquial, a tantos
meses, conseguiu levar a termo um processo com quase 600 mil páginas,
600 testemunhas, 40 réus no ponto de partida, sete crimes teoricamente
graves e imbricados no mais das vezes.
O sr. chegou a pensar em suspender as sessões?
Pensei, houve um momento em que pensei.
Pensei, houve um momento em que pensei.
Chegamos a ter ofensas pessoais.
Mas no limite palatável.
Mas no limite palatável.
Mas nunca houve um julgamento com clima tão tenso, às vezes com atritos tão fortes.
É que esse julgamento é peculiaríssimo. Quando dizem que o Supremo está tomando decisões novas, eu digo que os fatos é que são novos, o imbricamento é que novo, o gigantismo da causa é que é novo, é inédito. O Supremo Tribunal Federal está produzindo decisões afeiçoadas ao ineditismo da causa.
É que esse julgamento é peculiaríssimo. Quando dizem que o Supremo está tomando decisões novas, eu digo que os fatos é que são novos, o imbricamento é que novo, o gigantismo da causa é que é novo, é inédito. O Supremo Tribunal Federal está produzindo decisões afeiçoadas ao ineditismo da causa.
Advogados reclamam da introdução
de novos conceitos como a teoria do domínio do fato [segundo a qual
autor de um crime não é só quem o executa, mas também quem detém o poder
de decidir e planejar a sua realização].
Assim como o dançarino, que se disponibiliza de corpo e alma para a dança --chega o momento em que se funde com ela, e você já não sabe quem é o dançarino e quem é a dança, é uma coisa só--, o intérprete do dispositivo jurídico pode, também, numa relação de profunda identidade e empatia, se fundir com esse dispositivo. Aí você compõe uma unidade. Você é um com o dispositivo, e o dispositivo é um com você.
Assim como o dançarino, que se disponibiliza de corpo e alma para a dança --chega o momento em que se funde com ela, e você já não sabe quem é o dançarino e quem é a dança, é uma coisa só--, o intérprete do dispositivo jurídico pode, também, numa relação de profunda identidade e empatia, se fundir com esse dispositivo. Aí você compõe uma unidade. Você é um com o dispositivo, e o dispositivo é um com você.
E isso não é invencionice, decola de um juízo de Einstein, que em
1905, físico quântico que era, cunhou uma expressão célebre: "efeito do
observador". Ele percebeu que o observador desencadeava reações no
objeto observado.
Ele disse que o sujeito cognoscente, em alguma medida, faz o objeto
cognoscível, a depender do grau da intensidade interacional entre eles.
Claro que quando você joga teoria quântica para a teoria jurídica, se
expõe a uma crítica mordaz. O sujeito diz: "Mas isso não é ciência
jurídica".
O julgamento também é inédito pelo desfecho, com políticos condenados à prisão em regime fechado?
Sabe por que está sendo inédito? Porque vocês esquecem, a sociedade esquece, [mas] nós, ministros, não esquecemos. Isso vem num crescendo, só que agora é no campo penal. No campo científico, liberamos o uso das células tronco embrionárias. No dos costumes, decidimos em prol da homoafetividade, da interrupção da gravidez de feto anencéfalo, no ético cortamos na própria carne proibindo o nepotismo no Judiciário.
Sabe por que está sendo inédito? Porque vocês esquecem, a sociedade esquece, [mas] nós, ministros, não esquecemos. Isso vem num crescendo, só que agora é no campo penal. No campo científico, liberamos o uso das células tronco embrionárias. No dos costumes, decidimos em prol da homoafetividade, da interrupção da gravidez de feto anencéfalo, no ético cortamos na própria carne proibindo o nepotismo no Judiciário.
No campo político, afirmamos a Lei da Ficha Limpa. Isso é um
crescendo, o Supremo vem tomando decisões que infletem sobre a cultura
do povo brasileiro. E agora chegou o campo penal.
O Brasil muda?
Não se pode dizer que muda, sinaliza mudanças. Há um vislumbre de mudanças. Ninguém pode garantir nada. Agora, há uma sinalização. Mas a decisão não tem nada a ver com reverência à opinião pública, com submissão à opinião pública, com uma postura de cortejamento à opinião pública.
Não se pode dizer que muda, sinaliza mudanças. Há um vislumbre de mudanças. Ninguém pode garantir nada. Agora, há uma sinalização. Mas a decisão não tem nada a ver com reverência à opinião pública, com submissão à opinião pública, com uma postura de cortejamento à opinião pública.
Os políticos terão mais cuidado, com o risco de irem para a prisão?
Se respondesse sim, estaria fazendo um corte abrupto, radical, de que essa decisão é, sim, um divisor de águas. Não quero ser categórico. Eu digo que essa decisão do Supremo vem num crescendo, que agora alcança o plano criminal. Sinaliza uma nova época, de mais qualidade na vida política.
Se respondesse sim, estaria fazendo um corte abrupto, radical, de que essa decisão é, sim, um divisor de águas. Não quero ser categórico. Eu digo que essa decisão do Supremo vem num crescendo, que agora alcança o plano criminal. Sinaliza uma nova época, de mais qualidade na vida política.
Eu não posso dizer que a impunidade está com os dias contados, eu
estaria dourando a pílula, sendo ufanista, não posso dizer isso. Agora,
eu diria que a impunidade sofreu um duro revés, um tranco, por efeito
dessa decisão.
Este é o julgamento de um partido?
Na minha opinião, não tem nada a ver com julgamento de um partido. Não é o julgamento do PT, são réus, que alguns ocuparam cargos de direção no PT.
Na minha opinião, não tem nada a ver com julgamento de um partido. Não é o julgamento do PT, são réus, que alguns ocuparam cargos de direção no PT.
O sr. foi um dos fundadores do PT?
Sabe que não fui? Fazia conferências em aulas e congressos, em seminários, e advogava para coletividades. Só entrei mesmo no PT acho que em 1988, não fui fundador. Passei lá quase 18 anos.
Sabe que não fui? Fazia conferências em aulas e congressos, em seminários, e advogava para coletividades. Só entrei mesmo no PT acho que em 1988, não fui fundador. Passei lá quase 18 anos.
O sr. costuma dizer que é página
virada, mas, olhando no que o PT se transformou ao chegar ao poder,
isso de certa forma o entristece?
É interessante. A resposta não seria "me entristece". Vou dizer por quê. Eu vejo a vida por um prisma muito do dinamismo, heracliticamente, meu filósofo preferido.
É interessante. A resposta não seria "me entristece". Vou dizer por quê. Eu vejo a vida por um prisma muito do dinamismo, heracliticamente, meu filósofo preferido.
Veja o que aconteceu: qual dos dois partidos que encarnaram a
resistência ao regime de exceção [1964-85]? São, hoje, o PSDB e o PT.
Esses dois, que encarnaram a resistência, foram premiados, chegaram ao
poder. O primeiro, por intermédio de Fernando Henrique. O que aconteceu
com esse partido, que teve origem no MDB, no PMDB? Foi perdendo um
pouquinho do elã, do entusiasmo na sua militância de esquerda.
Aí, a sociedade disse: está na hora do outro. Qual foi o outro que
encarnou a resistência? O PT. Então, vejo por um prisma do exaurimento
de fases. A fase ideológica do PSDB se exauriu, a do PT também se
exauriu. Não de todo, não podemos ser injustos, porque o PT continua com
quadros muito bons. Um desses quadros chegou a escrever um artigo a
favor do Supremo, o Tarso Genro [governador do RS]. Vejo isso como parte
de um processo histórico previsível.
Os dois partidos se contaminaram?
Não vejo por esse prisma negativista. Eles perderam o que os gregos chamam de "Deus dentro da gente", entusiasmo. Aquele ímpeto depurador das instituições, aquela ânsia de voltar à democracia. Com o retorno à democracia, você chega à conclusão: foi mais fácil alcançar o objetivo do que preservá-lo. Às vezes você conquista uma mulher dos seus sonhos e não sabe manter o amor dela. Isso é um processo histórico.
Não vejo por esse prisma negativista. Eles perderam o que os gregos chamam de "Deus dentro da gente", entusiasmo. Aquele ímpeto depurador das instituições, aquela ânsia de voltar à democracia. Com o retorno à democracia, você chega à conclusão: foi mais fácil alcançar o objetivo do que preservá-lo. Às vezes você conquista uma mulher dos seus sonhos e não sabe manter o amor dela. Isso é um processo histórico.
Alguns ministros me disseram,
reservadamente, terem recebido reclamações, cobranças, de que, indicados
pelo ex-presidente Lula, acabaram traindo-o. O sr. acha que traiu Lula,
que o indicou?
Em nenhum momento me senti assim. Ninguém nunca me cobrou, menos ainda o presidente Lula, ele nunca se acercou de mim, se aproximou de mim para cobrar, fazer queixa. Até porque, vamos convir, cargo de ministro não é cargo de confiança. Não é.
Em nenhum momento me senti assim. Ninguém nunca me cobrou, menos ainda o presidente Lula, ele nunca se acercou de mim, se aproximou de mim para cobrar, fazer queixa. Até porque, vamos convir, cargo de ministro não é cargo de confiança. Não é.
Você não pode ser grato a quem nomeia com a toga. O modo de você,
pelo contrário, de honrar a indicação é sendo independente, é
transformar os pré-requisitos de investidura no cargo em requisitos de
desempenho no cargo. Fui nomeado a partir de dois pré-requisitos,
reputação ilibada e notável saber jurídico. Eu transformei isso, como me
cabia, em requisitos de desempenho. Então, eu honrei minha nomeação.
Dos dez ministros no julgamento,
sete foram nomeados por Lula ou por Dilma. Essa independência conta a
favor deles? Os presidentes petistas erraram nas nomeações?
Isso honra os nomeantes. A nossa postura técnica, independente, isenta, desassombrada, é uma postura que honra os nomeantes. Não só os nomeados.
Isso honra os nomeantes. A nossa postura técnica, independente, isenta, desassombrada, é uma postura que honra os nomeantes. Não só os nomeados.
Apesar de membros do PT afirmarem que o julgamento foi político?
Sim, a despeito disso. Isso faz parte da liberdade de expressão. Esse tipo de queixa eu recebo como pura liberdade de expressão, aceito sem maiores queixas.
Sim, a despeito disso. Isso faz parte da liberdade de expressão. Esse tipo de queixa eu recebo como pura liberdade de expressão, aceito sem maiores queixas.
Como foram os três meses de julgamento? Sua rotina mudou?
Não mudou em nada. Continuei meditando todos os dias, tocando violão quase todos os dias. Eu apenas diminuí muito, o que foi ruim para mim, minhas saídas de casa para me deleitar com espetáculos públicos, teatro, música.
Não mudou em nada. Continuei meditando todos os dias, tocando violão quase todos os dias. Eu apenas diminuí muito, o que foi ruim para mim, minhas saídas de casa para me deleitar com espetáculos públicos, teatro, música.
O vegetarianismo é um passo para a iluminação?
Não chegaria a isso, não. Agora, tudo tem uma lógica elementar. É claro que não vou explicar tudo pela lógica, porque o mundo do mistério existe e o mistério está fora da lógica convencional. Quando você olha para você e diz: "Não há ninguém dentro de mim, o meu corpo não está abrigando ninguém", quando você diz "eu sou um vazio", você enxota o ego.
Não chegaria a isso, não. Agora, tudo tem uma lógica elementar. É claro que não vou explicar tudo pela lógica, porque o mundo do mistério existe e o mistério está fora da lógica convencional. Quando você olha para você e diz: "Não há ninguém dentro de mim, o meu corpo não está abrigando ninguém", quando você diz "eu sou um vazio", você enxota o ego.
Mas não há vácuo na natureza. O que acontece? O vácuo vai ser
preenchido pelo universo, pelo Cosmos, pela existência, outros preferem
dizer por Deus. Expulse de si o ego que o espaço deixado por ele vai ser
instantaneamente ocupado pela existência. Aí você dialoga com a
existência, isso é elementar. Aí você tem um vislumbre do eterno, do
definitivo, mais clarividente, você abre os poros da lógica, do seu
cartesianismo, você vê o direito por um prisma novo.
Agora, você paga um preço por isso. Qual é? Quando vê as coisas por
um prisma totalmente novo, a sociedade não tem parâmetro para avaliar
seu prisma diante do inédito para ela. Você é um antecipado, viu antes
dela. O que ela faz, lhe desanca, lhe derruba, se não ela vai se sentir
menor, inferiorizada, aturdida. O que ela faz, ela lhe desanca, você
está errado, ou então você não é um cientista, você é um mistificador.
A sociedade não tem parâmetro para analisar os antecipados no
tempo. Veja a lógica das coisas, o tempo só pode se guiar por quem anda
adiante dele. São os espiritualistas, os artistas, porque eles não têm
preconceitos, pré-interpretações, pré-compreensões.
Como definiria os sete meses no comando do Supremo?
Uma honra muito grande, pela oportunidade de, a partir do Supremo, servir à sociedade brasileira. Só faz sentido exaltar a figura da presidência nessa perspectiva, do serviço da coletividade. Fora disso, não é viagem de alma, é viagem de ego.
Uma honra muito grande, pela oportunidade de, a partir do Supremo, servir à sociedade brasileira. Só faz sentido exaltar a figura da presidência nessa perspectiva, do serviço da coletividade. Fora disso, não é viagem de alma, é viagem de ego.
E como resumiria os nove anos que passou no Supremo?
Diria o seguinte: Em tudo o que faço, já não faço questão de ser reconhecido. O que faço questão é de me reconhecer. Fui eu mesmo nessas questões. Não perdi minha essência, minha mundividência.
Diria o seguinte: Em tudo o que faço, já não faço questão de ser reconhecido. O que faço questão é de me reconhecer. Fui eu mesmo nessas questões. Não perdi minha essência, minha mundividência.
Eu gravitei em torno dos valores que dão sentido, dão grandeza, dão
propósito à existência individual e coletiva. Eu não perdi a viagem. A
frase é essa.
O mensalão é o mais grave escândalo
de corrupção do país, como disse o Procurador-Geral da República,
Roberto Gurgel, analisando numa perspectiva histórica?
Nunca fiz essa comparação, se esse é o mais grave ou não. Sabe por
quê? Na medida que você diz, esse é o mais grave, você já resvalou para o
campo da subjetividade, e eu me defendo da minha própria subjetividade,
faço o possível para mim, porque as leis têm esse papel, livrar o juiz
de si mesmo.
O sr. disse que PSDB e PT
perderam o entusiasmo. Perder o entusiasmo significaria, neste caso,
montar um esquema como o do mensalão?
Não estou dizendo isso. Eu digo que os crimes eram graves, todos,
mas a corrupção passiva, em mim, despertava uma reflexão até mais
aprofundada no sentido de endurecimento das penas, pelo menos para
início de discussão.
Por quê? Porque, se não bastasse nossa tradição ruim de eleitores
de cabrestos, agora temos uma era de eleitos de cabrestos. Porque o
eleito propinado se torna de cabresto.
E, nos meus votos, deixei claro, tentei mostrar que não era o
Supremo que estava mudando de opinião, é que o caso é diferente, o caso é
singularíssimo, a exigir do Supremo ineditismo conceitual, mas na exata
medida da singularidade dos fatos. Fatos novos singulares pedem
visualizações jurídicas novas também.
O resultado do julgamento significa um revés também para a política?
A despeito do que disse, a utopia não pode se dissociar da política jamais. Porque, se não, você está dando um ducha fria na atividade política, e não se pode fazer isso. A atividade política é a mais importante atividade social.
A despeito do que disse, a utopia não pode se dissociar da política jamais. Porque, se não, você está dando um ducha fria na atividade política, e não se pode fazer isso. A atividade política é a mais importante atividade social.
Alan Marques/Folhapress |
Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ayres Britto, conversa com relator do processo do mensalão, Joaquim Barbosa |
Nesses nove anos de STF, o sr. já ficou emocionado com alguma causa a ponto de chorar?
Muitas, muitas. Quando presidi aquela primeira audiência pública da história do Supremo, do Judiciário, sobre células-tronco embrionárias, subiu Mayana Zatz, aquela geneticista brilhante, autoridade mundial, e deu um depoimento sobre uma criança paraplégica, ou tetraplégica.
Muitas, muitas. Quando presidi aquela primeira audiência pública da história do Supremo, do Judiciário, sobre células-tronco embrionárias, subiu Mayana Zatz, aquela geneticista brilhante, autoridade mundial, e deu um depoimento sobre uma criança paraplégica, ou tetraplégica.
Ela disse que tratava essa criança de uns 7 ou 8 anos em vão. Usava
todos os recursos da medicina convencional em vão. Um dia a menina
mandou chamá-la e ela foi ao hospital. Eu desabei. Eu já desabei várias
vezes, mas essa foi a mais forte.
A menina disse: "Doutora, eu mandei lhe chamar pelo seguinte. Por
que a senhora não abre um buraco nas minhas costas e põe dentro desse
buraco uma pilha, uma bateria, para que eu possa andar como minhas
bonecas?".
Quando essa mulher disse isso, respondi para mim mesmo: Essa menina
de sete anos acaba de fazer meu voto. Como é que eu posso ser contra?
Como? Esse foi um dos momentos mais fortes.
O sr. acha que o Supremo deveria liberar o aborto para outros casos, além do de feto anencéfalo?
É como a droga. Eu tenho abertura para a tese da descriminalização das drogas, mas não tenho opinião formada. Tenho simpatia, tendência, mas não tenho ponto de vista formado.
É como a droga. Eu tenho abertura para a tese da descriminalização das drogas, mas não tenho opinião formada. Tenho simpatia, tendência, mas não tenho ponto de vista formado.
A mesma coisa do aborto, mas não tenho ponto de vista formado. Para
mim, o grande problema é o traficante, é o tráfico. Isso é a causa de
uma criminalidade mais do que sistemática, contínua ou metódica, é
sistêmica. Disseminada e capilarizada.
O sr. avalia que o Estado está perdendo essa guerra contra o tráfico?
Não, não está perdendo. Eu ainda acredito no poder preventivo e repressivo do Estado nessa matéria. E o melhor é a discussão. Da discussão nasce a luz.
Não, não está perdendo. Eu ainda acredito no poder preventivo e repressivo do Estado nessa matéria. E o melhor é a discussão. Da discussão nasce a luz.
Olha aí, mais um exemplo, quando dissemos que é legítima a
passeata, o ato público, a reunião em praça pública para discutir a
descriminalização da maconha. Aliás, o uso puro e simples já está
descriminalizado.
Não ainda. A pena é mais leve. Só que gera distorção.
Isso! O rico, quando é pego com maconha, é reputado como usuário. E o pobre, quando é preso com maconha, é tido como traficante, como pequeno traficante.
Isso! O rico, quando é pego com maconha, é reputado como usuário. E o pobre, quando é preso com maconha, é tido como traficante, como pequeno traficante.
Por que isso, ministro?
Pois é. Nossa cultura elitista. Então veja como o Supremo avançou a dizer que todo tema pode ser manifestado. Nenhuma lei, nem mesmo a Constituição, pode blindar a si mesma de qualquer discussão.
Pois é. Nossa cultura elitista. Então veja como o Supremo avançou a dizer que todo tema pode ser manifestado. Nenhuma lei, nem mesmo a Constituição, pode blindar a si mesma de qualquer discussão.
O que vai ser a vida do presidente do Supremo pós-Supremo?
Olha, vai ser entusiasmada como tem sido aqui. Entusiasmo é Deus dentro da gente. Os gregos dizem isso. Eu ponho alegria e amor no que faço.
Olha, vai ser entusiasmada como tem sido aqui. Entusiasmo é Deus dentro da gente. Os gregos dizem isso. Eu ponho alegria e amor no que faço.
Algum desejo de entrar na carreira política, disputar eleição?
Não. Nenhuma. Aprendi na vida o seguinte: chega uma época em que você, em tudo o que você faz, já não precisa ser reconhecido, precisa se reconhecer. É o caso. Eu me reconheço no que faço.
Não. Nenhuma. Aprendi na vida o seguinte: chega uma época em que você, em tudo o que você faz, já não precisa ser reconhecido, precisa se reconhecer. É o caso. Eu me reconheço no que faço.
Aí você diz, mas por que você se reconhece? Aí eu digo: porque, sem
nenhum esforço, não me vejo criando abismo, vácuo, distância entre o
que eu prego e o que eu faço. Não me vejo, de jeito nenhum.
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