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terça-feira, 31 de julho de 2012

A irracionalidade da razão: a doença da mente



Leonardo Boff

30/07/2012
Não estamos longe da verdade se entendermos  a tragédia atual da humanidade como o fracasso de um tipo de razão predominante nos últimos quinhentos anos. Com o arsenal de recursos de que dispõe, não consegue dar conta das contradições, criadas por la mesma. Já analisamos nestas páginas como se operou a partir de então, a ruptura entre a razão objetiva (a lógica das coisas) e a razão subjetiva(os interesses do eu). Esta se sobrepôs àquela a ponto de se instaurar como a exclusiva força de organização histórico-social.
Esta razão subjetiva se entendeu como vontade de poder e poder como dominação sobre pessoas e coisas.  A centralidade agora é ocupada pelo poder do “eu”, exclusivo portador de razão e de projeto. Ele gestará o que lhe é conatural: o individualismo como reafirmação suprema do “eu”. Este ganhará corpo no capitalismo cujo motor é a acumulação privada e individual sem qualquer outra consideração social ou ecológica. Foi uma decisão cultural altamente arriscada a de confiar exclusivamente à razão subjetiva a estruturação de toda a realidade. Isso implicou numa verdadeira ditadura da razão que  recalcou ou destruíu outras formas de exercício da razão como a razão sensível, simbólica e ética, fundamentais para a vida social.
O ideal que o “eu” irá perseguir irrefreavelmente será um progresso ilimitado no pressuposto inquestionável de que os recursos da Terra são também ilimitados. O infinito do progresso e o infinito dos recursos constituirão o a priori ontológico e o parti pri  fundador desta refundação do mundo.
Mas eis que depois de quinhentos anos, nos damos conta  de que ambos os infinitos são ilusórios. A Terra é pequena e finita. O progresso tocou nos limites da Terra. Não há como ultrapassá-los. Agora começou o tempo do mundo finito. Não respeitar esta finitude, implica tolher a capacidade de reprodução da vida na Terra e com isso pôr em risco a sobrevivência da espécie. Cumpriu-se o tempo histórico do capitalismo. Levá-lo avante custará tanto que acabará por destruir a sociabilidade e o futuro. A persistir nesse intento, se evidenciará o caráter destrutivo da irracionalidade da razão.
O mais grave é que o capitalismo/individualismo introduziu duas lógicas que se conflitam: a dos interesses privados dos “eus” e das empresas e a dos interesses coletivos  do “nós” e da sociedade. O capitalismo é, por natureza, antidemocrático. Não é nada cooperativo e é só competitivo.
Teremos alguma saída? Com apenas reformas e regulações, mantendo o sistema, como querem os neokeynesianos à la Stiglitz, Krugman e outros entre nós, não. Temos que mudar se quisermos  nos salvar.
Para tal, antes de mais nada, importa construir um novo acordo entre a razão objetiva a a subjetiva. Isso implica ampliar a razão e assim libertá-la do jugo de ser instrumento do poder-dominação. Ela pode ser razão emancipatória. Para o novo acordo, urge resgatar a razão sensível e cordial para se compor com  a razão instrumental. Aquela se ancora do cérebro límbico, surgido há mais de duzentos milhões de anos, quando, com os mamíferos, irrompeu o afeto, a paixão, o cuidado, o amor e o mundo dos valores. Ela nos permite fazer uma leitura emocional e valorativa dos dados científicos da razão instrumental. Esta emergiu no cérebro neocortex há apenas 5-7 milhões de anos. A razão sensível nos desperta o reencantamento e o cuidado pela vida e pela mãe-Terra.
Em seguida, se  impõe uma nova centralidade: não mais o interesse privado mas o interesse comum, o respeito aos bens comuns da Humanidade e da Terra destinados a todos. Depois a economia precisa voltar a ser aquilo que é de sua natureza:  garantir as condições da vida física, cultural e espiritual de todas as pessoas. Em continuidade, a política deverá se construir sobre uma democracia sem fim, cotidiana e inclusiva de todos seres humanos para que sejam sujeitos da história e não meros assistentes ou beneficiários. Por fim, um novo mundo não terá rosto humano se não se reger por valores ético-espirituais compartidos, na base  da contribuição das muitas culturas, junto com a tradição judaico-cristã.
Todos esses passos possuem muito de utópico. Mas sem a utopia afundaríamos no pântano dos interesses privados e corporativos. Felizmente, por todas as partes repontam ensaios, antecipadores do  novo, como a economia solidária, a sustentabilidade e o cuidado vividos como paradigmas de perpetuação e reprodução de tudo o que existe e vive. Não renunciamos ao ancestral anseio da  comensalidade: todos comendo e bebendo juntos como irmãos e irmãs na Grande Casa Comum.


Leonardo Boff e autor de   Virtudes para um outro mundo possível, 3 vol.Vozes 2009.

domingo, 22 de abril de 2012

Discurso no ONU: por que a Terra é nossa Mãe


22/04/2012
Convidado oficialmente, tive a oportunidade  de fazer um pronunciamento durante a 63ª sessão da Assembléia Geral da ONU no dia 22 de abril de 2009 para fundamentar o projeto a ser votado de transformar o Dia Internacional da Terra em Dia Internacional da Mãe Terra. O projeto foi acolhido por unanimidadade pelos 192 representantes dos povos. Eis o texto pronunciado na ocasião.
Senhoras e Senhores, representantes dos povos da Terra.
Desejo começar recordando a séria advetência feita pela Carta da Terra ainda no ano 2000: “Estamos num momento crítico da história da Terra, no qual a humanidade deve escolher o seu futuro…A nossa escolha é essa: ou formamos uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros ou então arriscamos a nossa própria destruição e a da diversidade da vida”(Preâmbulo).
Se atual crise econômico-financeira é preocupante, a crise da não-sustentabilidade da Terra, revelada no dia 23 de setembro de 2008, se apresenta ameaçadora. Os cientistas que estudam a pegada ecológica da Terra chegaram a usar a expressão The Earth Overshoot Day, quer dizer, o Dia da Ultrapassagem da Terra. Exatamente, neste dia 23 de setembro, foi constatado que a Terra ultrapassou em 30% sua capacidade de reposição dos recursos que necessitamos para viver. Agora precisamos mais de uma Terra para podermos  atender as demandas dos seres humanos e aqueles da comunidade de vida.  Mas até quando?
Cumpre garantir previamente a sustentabilidade da Terra, se quiseros fazer face aos aos problemas mundiais que nos afligem como a crise social mundial, a alimentária, a energética e a climática. Agora não dispomos de uma Arca de Noé que pode salvar alguns e deixa perecer a todos os demais. Ou nos salvamos todos ou pereceremos todos.
Neste contexto, recordemos as prudentes palavras do atual Secretário Geral da ONU, Ban-Ki Moon, num artigo, mundialmente difundido, escrito em parceria com Al Gore: “não podemos deixar que o urgente comprometa o essencial”. O urgente é resolver o caos econômico e oessencial é garantir a continuidade das condições ecológicas da Terra para que ela possa nos oferecer tudo o que precisamos para viver.
Para reforçar esta nova centralidade que visa a salvar o essencial e a mostrar nosso amor a todos os humanos e à própria Terra é que se propõe à esta Assembléia Geral da ONU a resolução de celebrar  o dia 22 de abril não mais simplesmente como o Dia Internacional da Terra, mas como o Dia Internacional da Mãe Terra (International Mother Earth Day).
Se esta resolução for acolhida, como espero, aumentará em toda a Humanidade o cuidado, o respeito,  a cooperação, a compaixão e a responsabilidade face ao nosso Planeta e ao futuro do sistema-vida.
Não dispomos de muito tempo nem possuímos suficiente sabedoria acumulada. Por isso, temos que, juntos e rápidos, elaborar estratégias de sobrevivência coletiva.
Em nome da Terra, nossa Mãe, de seus filhos e filhas sofredores e de todos os demais membros da comunidade de vida ameaçados de extinção, vos suplico veementemente: aprovem esta resolução.
Para fundmentar esta aprovação me tomo a liberdade de apresentar-lhes, senhores e senhoras, representantes dos povos, algumas razões que nos concedem chamar a Terra de verdadeiramente nossa Mãe.
Antes de mais nada, falam os testemunhos mais ancestrais de todos os povos, do Oriente e do Ocidente e das principais religiões. Todos testemunham que a Terra sempre foi venerada como Grande Mãe, Terra Mater, Inana, Tonantzin e Pacha Mama.
Para os povos originários de ontem e de hoje, é constante a convicção de que a Terra é geradora de vida e por isso comparece como Mãe generosa e fecunda. Somente um ser vivo pode gerar vida em sua imensa diversidade, desde a miríade de seres microcópicos até os mais complexos. A Terra surge efetivamente  como a Eva universal.
Durante muitos séculos predominou esta visão, da Terra como Mãe, base de uma relação de respeito e de veneração para com ela. Mas irromperam os tempos modernos com os mestres fundadores do saber científico, Newton, Descartes e Francis Bacon, entre outros. Estes inauguraram uma outra leitura da Terra. Ela não é mais vista como uma entidade viva, mas apenas um realidade extensa (res extensa), sem vida e sem propósito. Por isso, ela vem entregue à exploração de seus bens e serviços por parte dos seres humanos em busca de riqueza e de bem estar. Ousadamente afirmou alguém: para conhecer suas leis devemos submetê-la a torturas como o inquisidor faz com o seu inquirido até que  nos entregue todos os seus segredos.
A Terra-mãe que devia ser respeitada, se transformou em Terra selvagem a ser dominada. Ela não passa, segundo eles, de um baú de recursos infinitos a serem utilizados para o consumo humano.
Neste paradigma não se colocava ainda a questão dos limites de suportabilidade do sistema-Terra nem da escassez de seus bens e serviços não renováveis. Pressupunha-se que eles seriam ilimitados e poderíamos infinitamente progredir em direção do futuro.
Hoje tomamos consciência de que a Terra é finita e seus bens e serviços são  limitados. Já encostamos nos limites físicos da Terra. Um planeta finito não pode suportar um projeto infinito. Os dois infinitos, dos recursos e do futuro, imaginados pela modernidade se revelaram ilusórios. Os bens e serviços não são infinitos nem o progresso poderá ser infinito porque não é universalizável para todos. Se quiséssemos generalizar para toda a humanidade o bem estar que os países opulentos desfrutam – já se fizeram os cálculos para isso – precisaríamos dispor de pelo menos de três Terra iguais a nossa.
A preocupação que sempre orientou a relação  dos modernos para com a Terra foi esta: como posso ganhar mais, no menor tempo possível e com o mínimo de investimento? O resultado desta voracidade gerou um arquipélago de riqueza rodeado por um oceano de miséria.
O PNUD de 2008 o confirma: os 20% mais ricos consomem 82,4% de todas as riquezas mundiais, enquanto os 20% mais pobres tem que contentar-se com apenas 1,6%. É uma injustiça clamorosa e criminosa que uma ínfima minoria monopolise o consumo e controle os processos produtivos de praticamente todos os países. Estes implicam a devastação da natureza, a criação de escandalosas desigualdades e a falta de solidariedade para com as gerações presentes e futuras. E por fim,  a condenação à miséria e à morte prematura das grandes maiorias da humanidade. Nenhuma sociedade poderá revindicar ser humana, justa e pacífica quando assentada sobre tanta iniquidade social e perversa inumanidade.
Não é sem razão que o aquecimento global e os desequilíbrios do sistema-Terra sejam atribuidos principalmente a esse tipo de organização social e econômica montada pelos seres humanos.


Se queremos conviver humanamente precisamos de um outro estilo de habitar o planeta Terra que tenha como centro a vida, a Humanidade e a Mãe Terra. Para este modelo, a preocupação central é: como viver e produzir em harmonia com a Terra, com os ecossistemas e com os outros seres vivos, buscando o “bem viver” das atuais e das futuras gerações. Como viver mais com menos?
Somente esse novo paradigma civilizacional respeita a Mãe Terra e garante sua integridade e vitalidade.
É neste contexto que se resgatou a visão da Terra como Mãe. Já não se trata da percepção ancestral dos povos originários mas de uma constatação científica. Foi mérito de James Lovelock  e de Lynn Margulis nos anos 70 do século passado e antes deles, do russo Wladimir  Vernadski ainda nos idos de 1920, terem comprovado que a Terra é um superorganismo vivo que permanentemente articula todos os elementos necessários para a vida de forma que ela sempre se mostra apta a produzir e a reproduzir vida.
Durante milhões e milhões de anos o  nível de oxigênio na atmosfera, essencial para a vida, se manteve em 21%; o nitrogênio, responsável pelo crescimento, em 79%; e o nível de salinização dos aceanos em 3,4% e assim todos os demais componentes que garantem a subsistência do sistema-vida.
Não somente há vida sobre a Terra. Ela mesma é viva, um superorganismo que se autoregula para manter um equilíbrio favorável à  existência e à persistência da vida. Foi denominada de Gaia, deusa grega, responsável pela fecundidade da Mãe Terra.
Para mostrar como a Terra é realmente viva, aduzamos um exemplo do conhecido biólogo Edward Wilson: “num só grama de solo, ou seja em menos de um punhado de terra, vivem cerca de 10 bilhões de bactérias, pertencentes a seis mil espécies diferentes”(A criação, 2008, 26). Efetivamente, a Terra é Mãe e é Gaia, geradora de toda a biodiversidade.
O ser humano representa aquela porção da própria Terra que, num momento avançado de sua evolução e de sua complexidade, começou a sentir, a pensar e a amar. Com razão, para as linguas neolatinas, homem vem de humus que significa terra fecunda e Adão, na tradição hebraico-cristã se  deriva de adamah que em hebraico quer dizer terra fértil. Por isso o ser humano é a Terra que anda, que ri, que chora, que canta, que pensa, que  ama e que hoje clama por cuidado e proteção.
A visão dos astronautas comprova esta simbiose entre Terra e Humanidade. De suas naves espaciais, exclamavam: “daqui de cima, olhando este resplandecente planeta azul-branco, não há diferença entre Terra e Humanidade; formam uma única entidade; e nós, mais que como povos, nações e raças, devemos nos entender como criaturas da Terra, como filhos e filhas da Terra”. Somos a própria Terra consciente e inteligente.
Entretanto, olhando a Terra não de fora e de longe, mas de perto e de dentro nos  damos conta de que nossa Mãe está crucificada. Possui o rosto do terceiro e quarto mundo, porque vem sistematicamente agredida e violada.  Quase a metade de seus filhos e filhas padecem fome, estão doentes e são condenados a morrer antes do tempo.
Por isso, significa um sinal de amor concreto para com a Mãe Terra as políticas sociais que muitos paises estão realizando em favor dos mais necessitados.  Podemos referir como exemplar o projeto Fome Zero  e a Bolsa Família  do governo do Presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva. Em menos de 8 anos devolveu dignidade a 50 milhões de pessoas que agora podem comer três vezes ao dia e sentir-se cidadãos incluídos.
É nossa obrigação baixar a Terra da cruz, tratá-la, curá-la e ressuscitá-la. Está em nossas mãos um documento precioso, um dos mais belos e inspiradores dos iníncios do século XXI, a Carta da Terra. Ela nasceu da consulta de milhares e milhares de pessoas de 46 paises e de sugestões surgidas de todos os grupos, desde  indígenas, comunidades pobres, igrejas, universidades e centros de pesquisa e outros. Concluída no ano 2000 foi assumida em 2003 pela UNESCO como “instrumento educativo e uma referência ética para o desenvolvimento sustentável”


Carta da Terra compreende a Terra como viva e como nosso Lar Comum. Apresenta pautas concretas, valores e princípios que podem garantir-lhe um futuro de esperança desde que a cuidemos com compreensão, com compaixão e com amor, como cabe à nossa Grande Mãe.
Oxalá, esta Carta possa um dia, não muito distante, ser apresentada, discutida, enriquecida por esta Assembléia Geral e ser incorporada à Carta dos Direitos Humanos. Assim teríamos um documento único sobre a dignidade da Terra com seus ecosistemas e a dignidade de cada ser humano.
Para que tudo isso se torne realidade não nos basta a razão funcional e instrumental da tecnociência. É urgente enriquecê-la com a razão emocional e cordial. É a partir deste tipo de razão  que se elaboram os valores, o cuidado essencial, a compaixão, o amor, os grandes sonhos e as utopias que movem a humanidade para inventar soluções salvadoras.
Esta razão emocional nos fará sentir a Terra como Mãe e nos levará a amá-la, a respeitá-la e a protegê-la contra violências e exterminações. Nossa missão no conjunto dos seres é a de sermos os guardiães e os cuidadores desta herança sagrada que o universo nos confiou.


Para terminar, me permito, Senhor Presidente, uma sugerência. Aprovada esta resolução de celebrar todo o dia 22 de abril como  o Dia Internacional  da Mãe Terra, sugiro que se ponha na cúpula vazia no alto da sala desta Assembleia, um globo terrestre, uma destas imagens belíssimas da Terra,  feitas a partir de fora da Terra. Esta imagem nos suscita sempre um sentimento profundo de comoção, de sacralidade e de reverência. Ao olhá-la, recordamos que ai está nossa única Casa Comum, a  nossa generosa Mãe Terra. Ela continuamente nos olha,  nos acompanha e nos ilumina para buscar os melhores caminhos para ela, para nós, para toda a comunidade de vida e para todos os seres que nela habitam.
Minha sugestão vai ainda mais longe: que  no dia 22 de abril de cada ano, em todos os lugares, nas escolas, nas fábricas, nos escritórios, nos laboratórios, nas empresas, nos parlamentos, se parasse e se fizesse um minuto de silêncio para pensarmos em nossa Mãe Terra e renovarmos nosso agradecimento por tudo aquilo que ela nos propicia e renovarmos nossa propósito de cuidá-la, de respeitá-la e de amá-la como amamos, respeitamos e cuidamos de nossas mães.
Estou convencido de que assim como está a Terra não pode continuar. Ela continuará seu curso evolucionáro mas sem nós.
A solução para a Terra não cairá do céu. Ela será  resultado de  uma coalizão de forças ao redor de valores e princípios éticos e humanitários que poderão devolver-lhe o equilíbrio perdido e sua vitalidade original.
Podemos e devemos transformar a eventual tragédia coletiva numa crise que nos acrisola e purifica. Esta crise nos tornará mais maduros e sábios para vivermos dignamente nesse pequeno e belo planeta pelo curto tempo que  nos for concedido. Assim nos sentiríamos como filhos e filhas da alegria, no seio da Grande Mãe que nos acolhe e nos dá vida.
Muito obrigado pela atenção.
Leonardo Boff
Representante do Brasil e da Iniciativa Carta da Terra.
Edifício das Nações Unidas em Manhattan, 22 de abril de 2009.




segunda-feira, 2 de abril de 2012

Como irrompeu na evolução o Homem Novo

Procissão de Passos. Oeiras - PI. 2012  Foto. Emanuel vital

02/04/2012
A Semana Santa é considerada pelos cristãos das várias Igrejas como a Grande Semana. Celebra-se na Sexta-feria Santa o processo judicial e a execução na cruz de Jesus de Nazaré e a irrupção do homem novo pela Ressurreição, no domingo de Páscoa. Há ai uma antecipação em miniatura do fim bom de todo o processo evolucionário. Essa é a fé dos cristãos. Oferecemos, numa linguagem não religiosa, o conteúdo religoso desta fé e desta esperança: LBoff
       Como todos de sua vilazinha era pobre. Como carpinteiro e camponês da fértil região da Galiléia, ajudava a família com seu trabalho.
Era visionário e grande contador de histórias. Mas não sonhava com outros mundos nem contava histórias desligadas da vida cotidiana. Queria este mesmo mundo, mas transfigurado. Se sonho era que a justiça, o respeito, o amor, a misericórdia e o perdão prevalecessem sobre o ódio, o egoismo e a arrogância. As relações deveriam ser de profunda igualdade. Ninguém deveria ser chamado de mestre, de chefe e de pai. Os que mandavam não mandavam. Serviam a todos. Misteriosamente tinha poder sobre dimensões sinistras da existência. Por isso curava cegos, purificava hansenianos, tocava a pele das pessoas que todos evitavam. Assim, pelo toque da pele, fazia com que elas se sentissem parte da humanidade e não excluídas dela. Chegou até a ressuscitar mortos: o filho da viúva de Naim e Lázaro, o irmão das amigas Marta e Maria. E ousava até perdoar pecados. Quem se sentisse mal com Deus e estava disposto a mudar, ouvia dele essas consoladoras palavras: “Teus pecados te são perdoados; vá em paz”!
Conhecia profundamente o coração das pessoas. Por isso, não julgava ninguém. Compreendia e mostrava misericórdia. Sua atitude base era essa: “Se alguém vem a mim, eu não o mandarei embora”. Pouco importava quem fosse, crianças, um oficial romano, um rico fiscal de impostos, de nome Simão ou um teólogo envergonhado, Nicodemos.
Certa feita, uma mulher foi apanhada em flagrante adultério. Todos queriam apedrejá-la. A lei assim o prescrevia. Ele ficou de cócoras na areia. Começou a escrever os pecados de todos os presentes. E estes iam saindo cabisbaixos, um a um. Até que ele ficou sozinho com a mulher. Com ternura lhe disse: “Mulher, alguém te condenou? Fêz-se longo e constrangedor silencio. “Eu também não te condeno. Mas não faças mais isso”.
Sonhava com uma solidariedade sem limites. Até para com os inimigos manifestos e tidos com hereges como os samaritanos. Se um deles estiver caído na estrada, seu conselho era: “esqueça tudo, verga-te sobre ele; leve-o para o hospital; e ainda deixe, adiantado, algum dinheiro para pagar os gastos”.
Seu sonho era que Deus não fosse sentido como um juiz implacável. Nem como um senhor onipotente. Mas como um pai, melhor ainda, como um paizinho (Abba). Tão terno e misericordioso que tivesse as características das mães. Deus, pai e mãe, não apenas dos bons, mas de toda humana criatura. Também dos “ingratos e maus”. Para o filho perdido na devassidão, o filho pródigo, se mostrava como pai miseicordioso e para a ovelha tresmalhada, pastor solícito.
Para todo o pecado, oferecia perdão. Para ele o ser humano é sempre resgatável.
Não era um asceta como os monges do deserto. Aceitava prazerosamente comer e beber com quem o convidasse como Zaqueu. Numa festa de casamento, ficou penalizado ao perceber que estava faltando vinho. Sua mãe já o alertara para o problema. Fez um dos maiores milagres de sua vida: transformou água em vinho e não vinho em água. Para que a festa se desenrolasse alegre até de madrugada. Não admira que pessoas invejosas de sua liberdade o chamassem de comilão, de beberão e de amigo de gente de má companhia.
Esse era o seu sonho, a sua utopia, a sua lenda pessoal: o Reino de Deus. Mas era um Reino sem rei, só de servos-irmãos e irmãs que se serviam uns aos outros. Mas para que esse seu Reino-serviço fosse verdadeiro, deveria começar bem lá em baixo, do fundo do inferno humano. Devia iniciar a partir dos invisíveis, pobres, oprimidos e pecadores. Se não começasse por eles, não seria para todos. Somente a partir dos últimos, os outros, os antepenúltimos e todos os demais até os primeiros podem ser incluídos. Por isso, gostava de dizer: “Felizes de vocês pobres! De vocês é o Reino de Deus”. Quer dizer: vocês serão os primeiros beneficiários do Reino de justiça, de bem-querença e de intimidade com o Pai e Mãe de infinita ternura!”
Como se depreende,esse Reino significa uma revoluçãoo absoluta: da criação inteira, finalmente, resgatada e reconciliada e das dimensões cósmicas, sociais, pessoais e espirituais. Tudo vai ser renovado, não sem a participação humana, pois com Deus nada é mecânico, mas tudo é participativo.
Sonho que se sonha só é pura ilusão. Por isso queria sonhar com outros. Reuniu um grupinho de doze ao seu redor: todos entusiastas mas sem grande consistência. Havia um outro grupo maior, de setenta e dois, que acreditavam nele mas com muitas reticências. Só o grupo das mulheres era fiel. Elas também o seguiam. Diz-se que Maria de Magdala tinha uma relação especial com ele. Elas o sustentavam generosamente e nunca o traíram, coisa que não aconteceu com os homens.
Sua primeira palavra foi cheia de força convocatória: “Gente, o tempo da espera expirou. O sonho vai se realizar! Acreditem nessa boa notícia. Vai ser uma grande alegria para todo o povo. 


...Mudem de vida. E comecem a realizar o sonho, lá onde estiverem. Caso contrário ele nunca vai acontecer”!
Todo visionário sofre. A realidade resiste ao sonho. As pessoas não gostam de mudar. E quando pressionadas, reagem com violência. Quanto de humanidade aguenta o ser humano?...






Armou-se um complô contra o sonhador de Nazaré. Velhos inimigos, Anás e Caifás, esqueceram suas desavenças para estarem juntos contra ele. O poder religioso – levitas e fariseus – se uniu ao poder político – saduceus e herodianos. As forças nacionais na pessoa de Herodes, se articularam com as forças romanas, imperiais, representadas por Pôncio Pilatos. Por fim, até o poder popular foi manipulado contra ele. Todos gritavam: “Fora com ele! Crucifiquem-no!” E foi crucificado. Morreu atirando um brado desesperado ao céu: “Pai, Pai, por que me abandonaste”?
E Deus que sempre escuta o grito do oprimido, atendeu ao grito do Crucificado. Disseram umas mulheres, três dias após ao seu sepultamento: “Ele está vivo, ele ressuscitou”!
Ressuscitou não no modo de Lázaro que foi apenas a reanimação de seu cadáver. Ressuscitou transfigurando a vida. Todas as potencialidades escondidas nelas desabrocharam totalmente. O que estava latente se tornou patente. Irrompeu o homem novo com um tipo de vida absolutamente nova, na qual o corpo assume as características do espírito e o espírito as características do corpo.
Ocorreu uma revolução na evolução. O que iria irromper no termo do processo evolucionário é agora antecipado. O fim bom do universo se mostra numa miniatura: na pessoa do Ressuscitado.
Este evento de infinita alegria e de total novidade foi testemunhado, em primeiro lugar, pelas mulheres, exatamente, porque elas nunca o traíram e lhe foram sempre fiéis. Elas o anunciaram aos apóstolos. Fizeram-se as apóstolas para os apóstolos. Só depois começam eles também a testemunhar a ressurreição.
Por isso os cristãos não celebram a memória de um passado mas o júbilo de uma presença, a do Ressusitado. A partir de agora a alternativa humana é essa: ou vida ou ressurreição.
À base da experiência das mulheres, os seguidores começaram a refletir e a reler toda sua vida e sua gesta passada. E concluiram: humano assim como esse homem só podia ser Deus mesmo. E começaram a chamá-lo de Filho do Homem, de Filho de Deus, por fim, de Deus mesmo encarnado em nossa miséria. Oh suprema ousadia da fé.
De onde ele vinha? Ninguém sabia dizer exatamente. De Nazaré? Mas este lugar não consta nas Escrituras do Antigo Testamento. Poderia vir alguma coisa boa de um lugar assim desconhecido? Quem era ele? Como se chamava?
Jesus de Nazaré é seu nome, filho de Maria cujo esposo era José.
Depois de termos dito tudo o que dissemos acima, qualquer semelhança com ele, Jesus, é pura coincidência.
Leonardo Boff escreveu Jesus Cristo Libertador, Vozes.