Feliz da vida ao lado de um grande ídolo. Salve, Gil!!
Em algum lugar do passado, cito de memória, numa dessas entrevistas rápidas, Gilberto Gil afirmou que no fim de sua carreira –depois das várias experimentações estilísticas que sempre fez– terminaria tocando um tambor. Gil pode estar longe do final de sua carreira, mas o recém-lançado "Bandadois" (CD e DVD) é o mais próximo que ele já chegou daquela síntese anunciada.
Talvez seja também a melhor oportunidade para um comentário mais detido sobre seu lugar na história da canção brasileira. Nos projetos anteriores, dedicados a Bob Marley e Luiz Gonzaga, era difícil situar o compositor e sua obra, já que o intérprete se destacava. Agora, munido de seu velho violão Takamine (triplamente captado), Gil está nu; mas seu violão não é um tambor. Sua execução instrumental está intacta, e sua voz, recuperada quase ao máximo.
Normalmente, são dois os polos que atraem a atenção da crítica: Caetano Veloso e Chico Buarque. Eles, e apenas eles, são constantemente confrontados, mesmo num país onde se contam os cancionistas aos milhares. Enquanto isso, Gil constroi uma obra gigantesca como cantor e compositor. A despeito dos hiatos políticos e longe dos extremos críticos, a obra de Gil está mais permeável à nossa audição.
Gil atingiu o lugar estranho do mito. Tudo que faz é envolto em grandes produções e é sempre foco de grandes atenções. Isso obscurece o que em sua obra é digno de um estudo mais acurado. Poderíamos tomar cada canção como uma peça e discorrer sobre ela. Cada canção mereceria um pequeno estudo. Mas, aqui, isso ganharia uma estatura monumental. Vamos então trabalhar sobre a generalidade.
Ambiente em preto e branco
No caso do "Bandadois" temos uma vantagem: Gil não fez a opção corrente de regravar um conjunto de “hits”. Ao contrário, optou pelo desvio, mesmo por canções que nunca gravou. Infelizmente, deixou de fora uma canção recente, quase confirmando minha afirmação inicial sobre a longevidade de sua carreira, um tema chamado “Não tenho medo da morte”, que pode ser ouvido no YouTube. A direção é de Andrucha Waddington, que dirigiu o documentário "Viva São João" (2002), registro de uma turnê de Gil pelo nordeste junino –um belo filme já esgotado.
Agora, longe da aridez do sertão, o diretor tinha um teatro novo em folha, dos mais modernos e bem equipados de São Paulo. Optou por um ambiente em preto & branco, pôs Gil girando em uma espécie de planeta desconhecido. Uma superprodução, afinal Gil é um dos símbolos da canção em sua relação com a indústria cultural. Seria preciso vesti-lo a caráter para que o DVD saísse bem nas vendas de Natal.
Esse talvez seja o ponto cego onde qualquer apreciação pode ser precipitada. Emolduradas pela produção, as canções permaneceram desta vez intactas, cada peça, cada tema respirando por si. Daí a grande chance de vê-las mais de perto. A canção de um compositor como Gil há muito deixou de ser apenas um produto. E isso não por ele, mas para além dele. Sua “sorte”, ou “estratégia”, foi ter conseguido vendê-la dentro de parâmetros milionários. Não há problema nisso pelo menos desde Baudelaire.
O resto é tarefa para quem, além do ouvinte médio, precisa tratar desse material musical a sós, num isolamento desagradável, onde só se ouve o próprio Gil –sabe-se lá se ainda sabedor de si ou já engolfado pelas luzes. Não é tarefa fácil, porque suas melodias estão diluídas no coro passivo do teatro, ganharam as ruas no Carnaval ordenado, embalam as cenas repetitivas e monótonas das novelas; como ouvir o que não se percebe?
Além disso, ainda é preciso discutir conceitualmente o que nem o próprio Gil sabe explicar. Aqui menciono um dos extras do DVD, chamado “Aulas de violão”. Qualquer estudante de violão se sentiria talvez constrangido por Gil, porque, quiçá pela primeira vez, quando ele resolve explicar seus “grooves” e seus “rifs” ao violão, a cena é engraçada, insólita, não fosse Gil. "Tanger" e "premir" são os verbos mais pronunciados.
A gente na verdade aprende de olho, não de ouvido. Salvo engano, ele não pronuncia o nome de nenhuma nota, fala sempre em casas e cordas, no máximo alguns acordes. Todos sabíamos disso, a relação diletante com o instrumento é quase hegemônica na música popular do Brasil. Mas é muito bom tocar como ele alguns desses temas. No DVD ele “passa” para nós “Abacateiro”, “Banda um”, “Refavela”, “Esotérico” e “Expresso 2222”; um "bróder" mostrando macetes no violão. Nada de mais. Tudo de bom.
Força e fraqueza
Menciono essa cena porque, quando discutimos música comercial para além do seu traço popular, as questões se multiplicam em direções tensas. Se a canção é uma estetização do tradicional, tudo bem, pois ela fica aquém da crítica. Mas, se essa composição funde aquela rítmica popular com a poesia culta, então teremos munição para um debate sem fim. Trata-se de uma questão de representação. Daquilo que somos e não somos, do que gostamos de ver nos simbolizando, do que julgamos uma alegoria e assim por diante.
Repetirei uma pergunta recorrente há pelo menos cem anos nas discussões culturais: quem somos nós enquanto nação? Não temos identidade, algo que nos defina, uma demarcação. Um problema que pautou a Alemanha durante décadas e que hoje, aparentemente, se definiu, aqui permanece obscuro: a representação a que me referi acima. Nada nos representa singularmente. Alguns acham uma força, outros nossa grande fraqueza.
A representação possível e que se impõe vem de duas vias desconexas: a TV e a universidade. Na primeira, o canal hegemônico e ainda onipotente nos define em suas necessárias fórmulas. Sendo sua sede na ex-capital, é de lá que parece emergir aquilo que somos. Nem preciso dizer o que há de falso nisso. Uma bobagem ensinada há gerações e que vai perdurar por um tempo impreciso. Mas que, ao mesmo tempo, nos garante a felicidade moldada, sem a qual o país implodiria.
A universidade vem depois, num segundo e distante lugar, pois fala para poucos, pertence a poucos, remoi certezas pessoais, sustenta egos intelectuais, vibra intensamente na sua indefinição e no seu descaminho. Mas ela é viva, e dela brotam grandes fatias do que melhor fazemos.
Mas qual é seu paradigma? O Brasil? Tudo, menos o Brasil. E aqui falo do que entendo um pouco, em minha área, a filosofia. O Brasil não parece importar ao filósofo brasileiro em geral tanto quanto as categorias kantianas. Não é um objeto digno. Ponto para o grande filósofo, que, sobretudo, deve ser lido (não por necessidade básica: nunca vi ninguém carente de Kant, embora deva existir).
A universidade acredita que um grande modelo precisa ser atingido. Com isso os objetos todos desse modelo emprestado são transpostos e incrustados na metodologia de pesquisa nacional –não esqueçamos que é um belo modelo: a Europa. Resultado? Qualquer aproximação com uma identidade filtrada pela tradicional expressão rural, que hoje já foi redefinida pela expressividade urbana, é digna de riso. Gilberto Gil, por exemplo –para que o leitor não pense que mudei de assunto.
Canção em estado bruto
Numa longa temporada no Brasil, o antropólogo Claude Lévi-Strauss, nos forneceu algumas das mais brilhantes impressões sobre o país. Entre essas certeiras observações, algumas são lapidares e valem para qualquer nação: “O sociólogo pode contribuir para essa elaboração de um humanismo global e concreto. Pois as grandes manifestações da vida social têm em comum com a obra de arte o fato de que nascem no nível da vida inconsciente, porque são coletivas no primeiro caso, embora sejam individuais no segundo; mas a diferença é secundária, inclusive é só aparente, já que as primeiras são produzidas pelo público e as outras, para o público, e esse público fornece a ambas o seu denominador comum, e determina-lhes as condições de criação” ("Tristes Trópicos", Companhia das Letras, 2009, p. 116).
Que ele tenha escrito isso num livro sobre o Brasil não deve ser desconsiderado. A música comercial brasileira existe a seu jeito porque sua recepção se impôs e lhe impôs determinados traços. Nos falta bom gosto por que não nos emocionamos com Bach e Beethoven, mas sim com Roberto Carlos e Maria Bethânia? Estou perguntando sinceramente, porque eu sofro de tal penúria, embora me defenda vez por outra.
Quando coloquei o "Bandadois" no "player" estava certo de que nada de novo seria visto. A canção em estado bruto –principalmente para quem já tentou fazê-la– é uma experiência emocionante, mas, para muitos, é banal e simplória. A voz e violão de um homem de 67 anos, carregado de vivências: para que serviria isso?
Não estou dizendo (mas bem que gostaria) que isso é “grande arte”, uma elaboração eterna de um artista que ficará na memória coletiva. Não sei o que significa a obra musical de Gil de um ponto de vista estético. Estou dizendo que sua música é uma das mais intensas e mais representativas formulações daquilo que eu gostaria que fosse o Brasil. Não sei se isso nos empobrece, sei que ele é um produto da nossa exigência, do que pedimos para ouvir e repetir.
Quem nos diagnosticou junto com nossas necessidades vãs foi um dos maiores filósofos do século XX, Theodor Adorno. Nenhum outro pensou tanto a sociedade e a humanidade a partir da música. Não nos deu um antídoto fácil contra a civilização urbana e suas imposições medíocres, apenas os instrumentos para formulá-lo. Nunca conseguimos, pelo menos em nossa maioria.
Mas há quem viva imerso nessa música emancipatória, mesmo no Brasil, onde pouco se ouve música contemporânea e raros são os que a analisam e a dissecam com brilhantismo intelectual. Um triunfo na opinião de alguém que não consegue ultrapassar a vida simples e que acha Renato Teixeira um grande artista porque lhe parece um grande homem; que sente a morte de um Arnaud Rodrigues porque foi uma das fontes musicais em que bebeu e que, portanto, lhe deu existência. Mas voltemos ao "Bandadois".
Interrogações de Gil
Na primeira faixa do DVD, “Máquina de ritmo”, Gil interroga sobre seu próprio lugar e também sobre a forma musical de seu trabalho: "Poderei legar um dicionário de compassos pra você/ No futuro você vai tocar meu samba duro sem querer (...)/ Será por exemplo que meu surdo ficará mudo afinal/ Pendurado como um dinossauro no museu do carnaval?". E avisa que nem ele mesmo sabe: "Se você aposta que a resposta é sim/ por Deus mande um sinal". Num tema mais antigo, “Esotérico”, o mesmo tema vinha mais pleno de certeza: "Não adianta nem me abandonar/ porque mistério sempre há de pintar por aí". Pode ser engano, mas ele mantém um leve sorriso de desdém diante da própria dúvida.
Em "BandaDois", Gil parece se dar todos os direitos, até o de fazer um balanço de sua vida em família; saberemos das canções escritas para sua mulher, Flora, ao longo dos 30 anos de vida conjunta. Canta com amor renovado: "É sua vida que eu quero bordar na minha/ como se eu fosse o pano e você fosse a linha" (“A linha e o linho”). Sabemos dos oito filhos, conhecemos Bem Gil, que divide o palco com o pai.
Sabemos até do casamento de um filha e do tema composto em forma de conselho: "Se porventura a vida dura/ Lhes for madrasta e voraz/ Sejam capazes, audazes e bons/ Façam das pazes noturnos bombons/ E os percalços naturais farão parte da canção/ Serão tropeços e recomeços/ Uma a cada vez, cada mês/ E vocês se acostumarão" (“Das duas, uma”). No final, um “Deus lhe abençoe”, benção interiorana.
Em poucas ocasiões Gil remete aos seus mestres: ao cantar “Saudades da Bahia”, se reporta a Dorival Caymmi em tom reverente, fala de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, e canta deste uma suingada interpretação de “Chiclete com banana”, uma versão que Gil matura há muitos anos e que chegou a seu ponto máximo. A participação de Maria Rita é sincera. Apesar de Gil chamá-la para cantar um tema que Elis gravou, “Amor até o fim”, para na saída a comparar com a mãe; é preciso desprendimento... principalmente dela.
De resto, tudo gira em torno da própria obra e das canções mais perenes, daquelas que, para o próprio Gil, parecem ter a força da continuidade, “Tempo rei”, “Metáfora”, “Superhomem – A canção”, “Refazenda”, “Esotérico”. Será por isso afinal que tantas canções para Flora foram incluídas? Uma ligação íntima entre o amor que dura e a canção que permanece?
Poucas ousadias são ouvidas, como a desconhecida “Rouxinol”, parceria com Jorge Mautner, um tema delicioso e despretensioso, mas que serve de deixa para a segunda parte do DVD, onde a marca forte das performances ao vivo de Gil, as canções pop, darão o tom. A transição é tranquila, começa pelo violão “violado” de “Refazenda”, para dar lugar a um tema pouco frequentado, “Banda um”, que mostra a rítmica poderosa que faz de Gil um duplo de Benjor –imagina-se logo um novo encontro dos dois, apenas com seus violões.
Depois canta “Raça humana” para a plateia ensaiar um aplauso saudoso. O violão de Bem Gil se impõe definitivamente. Prova de que essas canções “filosóficas” têm seu impacto. "A raça humana é uma semana do trabalho de Deus/ A raça humana é a ferida acesa/ Uma beleza, uma podridão/ O fogo eterno e a morte/ A morte e a ressurreição/ (...) A raça humana é o cristal de lágrima da lavra da solidão/ da mina cujo mapa traz na palma da mão." Não sei se dá uma tese, mas que dá uma boa sesta, isso dá.
Adiante ele anuncia: “África!”, e canta em sequência “La renaissance africaine”, “Pronto pra preto”, “Andar com fé”, e já estamos no bis, quando sobre ao palco outro filho, José, ao contrabaixo, para “Refavela” e a genealógica “Babá Alapalá”: "Aganjú, Xangô, Alapalá Alapalá Alapalá/ Xangô Aganju/ O filho perguntou pro pai/ Onde que tá o meu avô?/ O meu avô onde é que tá?/ O pai perguntou pro avô onde é que tá meu bisavô/ Meu bisavô onde é que tá?/ Avô pergunta ao bisavô/ Onde é que tá tataravô?/ Tataravô onde é que tá?/ Tataravô, bisavô, avô, pai Xangô Aganju/ viva Egum Baba Alapalá".
Gil encerra remetendo ao passado, à tradição africana, ao berço, à religiosidade negra. Ao que permanece nele como um documento de sua identidade cada dia mais reforçada. Gil é uno e múltiplo, nele pode fazer algum sentido a bobagem comercial chamada “world music”. Não é por acaso que ele é tão querido nos circuitos europeus, onde, por falar nisso, estão os ouvintes mais “educados” do planeta. Gil canta o mundo.
Dizem que o sertão pode ser estetizado negativamente. Que um filme de 35 mm pode transformar o semiárido num quadro, que uma foto PB faz tudo parecer mais artístico. Pode ser verdade. Os exemplos no cinema e na fotografia brasileira estão aí. Mas existe uma coisa que não pode ser inventada, o que chamaria aqui de reflexos da vivência. Pode-se lidar com isso e com certos sofrimentos que passamos de várias formas. Mas não se pode negar que o que resta de toda uma vida é o lampejo dessa experiência.
Gil poderia inventar o que quisesse, metáforas, viagens pseudocientíficas, psicodélicas, mas não poderia mascarar os reflexos de sua história pessoal –é isso que chamamos de vivência e que marca tão fortemente a nossa música popular–, por isso encerro este texto arriscando dizer que “Lamento sertanejo” é o ponto alto do DVD e um dos pontos altos da obra.
É nele que Gil expõe a geografia exata de sua música: sua entrada na urbe ameaçadora, sua lida com essa cidade-símbolo –que o constituiu na mesma medida que a primeira infância em Ituaçu, na Bahia–, talvez alguma solidão, o pensamento que se fecha sobre si mesmo, “Eu quase não sei de nada”, esses lampejos que, queiramos ou não, nos refletem em alguma medida. Resta saber como esse ensinamento ultrapassado pode ser revivido.
Lamento sertanejo
Por ser de lá do sertão
Lá do cerrado
Lá do interior, do mato
Da caatinga, do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigo
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado
Por ser de lá
Na certa, por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada
Caminhando a esmo.
(Gilberto Gil & Dominguinhos)
Henry Burnett
É doutor em filosofia pela Unicamp e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo.
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