domingo, 29 de maio de 2011

Música

08 de marzo de 2007, 07:55

Mão e contra-mão

Paulo Costa Lima

A bossa-nova na perspectiva histórica é uma bela e brilhante mescla da flexibilidade do samba com a disciplina de Chopin
Foi ninguém menos que Chopin quem recomendou deixar a mão esquerda agir de forma intransigente e inflexível "tal como um regente de orquestra" e deixar a mão direita fazer simplesmente o que quisesse. Os que conhecem um pouco da música de Chopin sabem como essa recomendação é importante tanto do ponto de vista da interpretação como do ponto de vista da concepção musical. Imaginem tal conselho aplicado à música de Bach, ou a um toque de candomblé!
No entanto, tomando a perspectiva da tradição homofônica que surge com a Escola de Manheim e frutifica em Mozarts e Haydns, a recomendação de Chopin é um sinal de maturidade. Liberados da textura polifônica, os compositores clássico-românticos precisaram criar outros níveis de ambigüidade e de diversidade, não mais entre vozes semi-autônomas. Por um lado, houve o investimento no vocabulário harmônico, por outro, o investimento na diversificação rítmica, sendo o tal conselho um dos aspectos desse processo.
Mas se o candomblé e o samba são um tanto imunes aos rubatos chopinianos, o mesmo não se pode dizer da bossa-nova, que juntamente com o jazz, ocupa lugar de destaque na linha sucessória do rubato melódico. A arte de João Gilberto tem sido bem essa, uma herança de Chopin, e ao mesmo tempo sua relativização através da referência ao samba. A voz adquire a liberdade da mão direita, e o violão encena a tal inflexibilidade.
A solução encontrada reproduz-se em vozes as mais diversas nos dias de hoje, embora seja uma arte difícil escolher e acalentar os contratempos, as resoluções fora de hora, e toda uma sensação flutuante que se transmite ao ouvinte.
Assim como em Chopin, ouve-se a tansgressão da norma e ao mesmo tempo a própria norma, unha e carne de um mesmo efeito sonoro. No caso de João, o tal intimismo que todos os comentadores comentam, talvez seja apenas o melhor pano de fundo para as tonalidades discretamente berrantes que seus deslizes proporcionam ao ouvido.
Para os interessados, aí está um exemplo de diálogo entre identidades culturais distintas. Se foi possível combinar samba e Chopin, então talvez o futuro nos reserve adoráveis combinações de pagode e dodecafonismo, ou seja música atonal utilizando democraticamente os doze sons da escala cromática, porque em termos de rock, Barnabé já fez.
A Bahia, que dá régua e compasso a muita gente, também misturou Chopin e baianidade em muitas coisas do pianista Carlos Lacerda, e experiências atonais/seriais em namoro com materiais brasileiros marcam a obra de Fernando Cerqueira e Lindembergue Cardoso, entre outros.
Se os rubatos de Chopin eram de fato indicações de relativização do tempo (há quem sustente que eram apenas indicações de alternância nos acentos do compasso), então eles eram bem mais do que isso, eles prenunciavam o fim da expectativa de pulsação regular, e o território inexplorado das construções rítmicas que o Século XX desbravaria a partir de Stravinsky.
O que seria da indústria cultural sem a muleta da pulsação regular em música?


Paulo Costa Lima é compositor, professor da Escola de Música da UFBA.
www.myspace.com/paulocostalima - http://www.paulolima.ufba.br/


Nenhum comentário: