segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Nova ordem mundial a vista. O FiM do MeDo

EUA : Occupy Wall Street,

prenúncio de um

“novo bloco social”?

16 de Outubro de 2011  
Para quem viveu, ao longo dos últimos anos, a experiência das grandes dificuldades em conduzir com algum êxito lutas sociais de resistência, este movimento, pelo menos, revela recursos escondidos na chamada sociedade civil. Por Charles-André Udry



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Em 17 de Setembro de 2011, no seguimento de um apelo lançado em fins de julho no site Adbusters – um site que refere a sua vontade de «mudar a maneira como a informação se difunde, como as empresas exercem o poder e como os sentidos são produzidos na nossa sociedade» – os primeiros “activistas” davam o sinal de partida do movimento Occupy Wall Street (OWS) em Nova Iorque.


O polícia de Nova Iorque não os deixou instalar as tendas no meio do centro financeiro mundial. Fizeram-no no Zuccotti Park, situado na proximidade do “Ground Zero” no Lower Manhattan. A praça foi rebaptizada de “Liberty Square” [Praça da Liberdade], em referência à Praça Tahrir do Cairo.


Daí para cá, o movimento estendeu-se a um grande número de cidades por todos os EUA, mais de 75 no dia 6 de outubro. Desde o começo deste mês, o apoio de várias secções de diferentes sindicatos e diversas organizações de bairro (community groups) veio trazer uma dimensão inusitada a este movimento social.


Nele se agrupam diversas fracções da sociedade: desde as pessoas cuja casa foi arrestada [penhorada] (por não terem podido pagar juros hipotecários usurários), passando pelos estudantes endividados até ao pescoço e obrigados a desistir dos cursos a meio, até aos desempregados e aos múltiplos não-inseridos de uma sociedade atingida pela crise mais ampla desde a Segunda Guerra Mundial. O movimento tende a alargar-se a sectores de assalariados, tanto do público como do privado. Uma tendência que ainda precisa de confirmação.


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Há duas palavras de ordem que traduzem o perfil do movimento: A primeira: «Nós somos os 99%», com isso significando que, neste sistema, há 1% da população que manda e que dele tira as maiores vantagens. Esta relação de 99% para 1% simboliza também a bipolarização acentuada da repartição da riqueza social produzida nos Estados Unidos. A segunda [palavra de ordem]: «Os bancos foram salvos. Nós fomos vendidos.» Ou seja, à sua maneira, é posta em questão a política do governo e dos “senhores de Wall Street” – a fracção do capital financeiro – que exercem sobre as opções do governo de Obama uma influência determinante.


O New York Times de 8 de Outubro de 2011 consagrava um artigo suplementar ao OWS. Centrava-se no papel das redes sociais da sua organização, o que lhe permitia passar ao lado do seu conteúdo social. No entanto, Jenniffer Preston é forçada a falar das questões que se discutem por todos os EUA: por um lado a questão do emprego, «a cupidez das empresas e os cortes orçamentais»; por outro, os problemas “mais próximos” com que se debatem as populações de diversas cidades.


Também é dado destaque às reacções brutais da polícia. A polícia de Nova Iorque não hesitou em prender 700 manifestantes, a 1 de Outubro de 2011, que de facto não estavam a bloquear a ponte de Brooklyn, contrariamente ao afirmado pelos médias [mídia] em todo o mundo.


O movimento OWS não nasceu do nada


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Este movimento e a sua dinâmica não apareceram sem mais nem menos, num país onde mais de 46 milhões de pessoas vivem abaixo do limiar da pobreza. Isso é denotado pelas últimas estatísticas sobre o emprego, sobre a pobreza e sobre uma crise estadunidense que, de facto, nunca parou desde 2008. A taxa de desemprego – sem contar os empregos a tempo parcial, impostos com salários de miséria, nem as pessoas “que desistem” e deixam de procurar emprego, sendo excluídas das estatísticas – situa-se nos 9,1%. Em Setembro de 2011 a distribuição do desemprego era a seguinte: 14 milhões de desempregados registados, homens e mulheres; 9,3 milhões de “involuntariamente empregados a tempo parcial”, ou seja, que procuram um emprego a tempo inteiro e não o encontram; 2,6 milhões de “inseridos marginalmente no mercado de trabalho”, no sentido em que não procuram activamente (no momento do inquérito) um emprego. Isto é, um total de 25,9 milhões. Quanto ao número de desempregados há mais de seis meses, situa-se praticamente no máximo atingido na primavera de 2010, ou seja, 44,6% em Setembro de 2011 (contra os 45,6 de Abril de 2010).


Ora, a criação de postos de trabalho baixou no decurso dos últimos cinco meses de 2011. Por conseguinte o desemprego vai aumentar nos próximos meses; não somente por efeito da desaceleração económica, mas porque o crescimento da população activa é superior ao da criação de empregos.


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A isto haverá que acrescentar, desde já, as reduções permanentes de empregos no sector público, em particular ao nível dos municípios e dos estados, fortemente endividados. Foram suprimidos cerca de 44.000 empregos públicos só durante o mês de Setembro de 2011. O ensino secundário foi o alvo principal da compressão de efectivos: professores, bibliotecários, empregados administrativos, etc.


Heidi Shierholz, do Economic Policy Institute, faz a soma da diminuição de assalariados do ensino secundário desde 2008 (ou seja, 278.000) com o aumento de número de professores que tornado necessário pelo crescimento do número de jovens em idade escolar: 48.000. Quer dizer, o fosso “contabilístico” entre os professores necessários e o efectivo actual situa-se nos 326.000, no que diz respeito ao sector público de educação.


Ora, entre 2008 e 2010, o número de crianças que vivem na pobreza aumentou pelo menos 2,3 milhões. São precisamente esses jovens que precisariam de um enquadramento escolar mais abundante e consistente. Este é um dos muitos compromissos do governo de Obama que não foram cumpridos.


Por si sós, estes factos explicam sem dúvidas o empenhamento dos professores, dos seus sindicatos e da Coligação pela Educação Pública nos diversos movimentos OWS nas cidades.


Empenhamento reforçado pela revolta social em Madison (Wisconsin) contra a brutal política de austeridade do governador Scott Walker – ver, sobre este assunto, os artigos publicados neste site [alencontre.org] desde Março de 2011 [1] –, revolta essa marcante para um sector da população, tanto pelos seus objectivos como pelas formas de acção e pela convergência social por ela concretizada. Em Madison, as iniciativas dos professores foram determinantes.


Encontros que fazem mudanças


As reportagens sobre as diversas manifestações permitem captar, em parte, o estado de espírito dos participantes. Assim, em 5 de Outubro, em Nova Iorque, um empregado da FedEx (a empresa trasnacional de logística, activa também na Suíça [2]), que desfilava com o seu fato de trabalho [uniforme], dizia a um jornalista: «Eles estão sempre a tentar aumentar o nosso trabalho. Se fazemos 40 entregas, querem que façamos 50. Se fazemos 50, passam para 60.» Não há sindicato na empresa dele. E conta: «Nunca participei numa manifestação, esta é a minha primeira vez.» Com ele, estavam ali alguns milhares de estudantes da New York University, da Columbia University e da New School.



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Discursando nessa manifestação, Bob Master, do sindicato de Trabalhadores das Comunicações da América (um dos dois existentes para os assalariados dos meios de comunicação e dos médias [mídia]), declara: «Olhem à vossa volta. A democracia é isto. O Occupy Wall Street capta o espírito do nosso tempo. Madison é aqui. O Cairo é aqui. A Tunísia é aqui. O Occupy Wall Street deu início a um movimento do qual todos, em todo o mundo, fazemos parte.»


Para além da ênfase retórica, Master sublinha um aspecto deste movimento que alguns queriam, quando estava a começar, reduzir a uma expressão mimética por parte de alguns “indignados” que iam atrás de uma moda. De facto, como os movimentos sociais cujas raízes estão enterradas numa sociedade transtornada, o OWS tornou-se – de forma embrionária – um ponto de encontro e de mútuo reconhecimento para pessoas marcadas por um isolamento social agravado nesta fase do capitalismo. No clima ambiente, ele conseguiu atrair organizações sociais mais tradicionais, muitas vezes apanhadas de surpresa.


Desde logo, para quem viveu, ao longo dos últimos anos, a experiência das grandes dificuldades em conduzir com algum êxito lutas sociais de resistência, este movimento, tendencialmente, limpa o horizonte ou, pelo menos, revela recursos escondidos na chamada sociedade civil.


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Danny Lúcia, na publicação da ISO (International Socialist Organization), refere que os participantes da marcha de 5 de Outubro em Nova Iorque – ao contrário das manifestações tradicionais organizadas pelos sindicatos – misturavam-se, discutiam uns com os outros as suas situações pessoais, não desfilavam divididos segundo as suas pertenças sindicais. E, terminada a marcha, não dispersavam de imediato para voltar para casa. Discutiam entre eles, ouviam a intervenção do cineasta Michael Moore ou examinavam os livros oferecidos pela “biblioteca da liberdade”.

É preciso, no entanto, sublinhar a importância da participação, nessa jornada, das enfermeiras e restante pessoal de cuidados de saúde do [sindicato] National Nurses United. De facto, os ataques contra o sector da saúde pública são tão fortes quanto os visam a educação. O que explica esta participação organizada.


Traços de um programa social perturbador


O que diferencia o movimento qualificado como “Global Justice” do fim dos anos 1990 – o qual se centrava em temas ligados à contestação das políticas da OMC (Organização Mundial de Comércio), e do FMI e do Banco Mundial – deste OWS é a dissemelhança da situação económica. A frustração social não tem comparação. Além disso, o atentado do 11 de Setembro de 2001 dera de bandeja uma arma ao governo de Bush: o forjar de uma unidade nacional e o alinhamento dos sindicatos com o perfil próprio dos do tempo da guerra fria.


Por isso, no contexto actual, se o OWS quiser aumentar a sua audiência e a sua capacidade de estimular a emergência de um novo bloco social, ele terá de “ocupar em conjunto” como sugerem, nas suas acções e propostas, os sindicalistas activos, de combate. O movimento – se observarmos em detalhe as diferentes expressões que assumiu em dezenas de cidades – pode suscitar uma convergência entre, por um lado, reivindicações relativas à criação de empregos e contra os cortes no sector público e, por outro lado, os temas que estruturam a declaração inicial onde se afirma que «a verdadeira democracia não pode ser atingida quando o processo [democrático] está submetido ao poder económico».



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Na lista das constatações feitas na assembleia de Nova Iorque em 20 de Setembro de 2011 podem-se encontrar, de facto, os elementos de um programa social de envergadura: «Eles tiraram-nos as casas por meio de confiscos ilegais, mesmo sem estarem na posse do empréstimo hipotecário original» [mecanismos próprios dos subprimes]; «recapitalizaram os bancos em total impunidade com dinheiro que foram arrancar aos contribuintes, enquanto os seus gestores se outorgam bonificações exorbitantes»; «aprofundaram a desigualdade e as discriminações no local de trabalho, baseadas na idade, na cor da pele, no sexo ou na orientação sexual»; «procuraram incessantemente tirar aos assalariados o direito de negociarem melhores salários ou condições de trabalho mais seguras»; «fizeram reféns milhares de estudantes por meio de dívidas de dezenas de milhares de dólares para pagarem os estudos, estudos que constituem um direito da pessoa humana»; «subcontrataram o trabalho de forma sistemática e usaram essa subcontratação como alavanca para baixarem o salário e o seguro social de saúde».


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E a lista continua, abordando tanto questões relacionadas com a crise ecológica como as que dizem respeito à política dos médias [mídia] dominantes, às empresas farmacêuticas ou ainda à utilização da força de trabalho dos migrantes. Num artigo reproduzido pelo Socialist Project de 6 de Outubro de 2011, Pham Binh reproduz as declarações de um participante de uma das manifestações: «Mark Purcell viajou desde o centro da Pensilvânia para participar no OWS e afirma que quer participar em qualquer ocupação que seja organizada na Pensilvânia. Mark conta que percebeu a total podridão do sistema quando trabalhou num depósito de mercadorias em Allentown [Pensilvânia] como operário subcontratado. Afirmava que as empresas se aproveitavam dos imigrantes indocumentados na medida em que não tinham qualquer direito legal ou protecção. No mesmo minuto em que se queixou das condições em que trabalhava, a empresa para a qual estava trabalhando mandou-o dirigir-se à agência de trabalho temporário e esta última despediu-o. Estava furioso por essas empresas subcontratarem o trabalho com essas agências e usarem isso para se furtarem às suas responsabilidades, no que diz respeito às condições de trabalho.»


Ocupar em conjunto”


As informações sobre o movimento OWS multiplicam-se. Alguns aspectos, no entanto, merecem ser destacados na medida em que podem ser indicadores de um processo social novo.

Assim, em Nova Iorque, Jenny Brown e Misch Gaus relatam no boletim Labor Notes de 6 de Outubro de 2011: «Em Nova Iorque [5 de Outubro] os panos, os cartazes, os bonés e as T-shirts [camisetas] denotavam a presença de trabalhadores dos comboios [trens], dos autocarros [ônibus] e do metro, de empregados administrativos das universidades, de músicos, de empregados dos grandes armazéns, de professores e de assalariados do sector da saúde. Mas a maioria dos manifestantes parecia não estar ligada a qualquer sindicato.»


Apesar disso, foi uma ocasião para militantes sindicalistas lembrarem que certas palavras de ordem – bem justas como “salvaram os bancos, e a nós, venderam-nos” – eram provenientes de lutas operárias, como a que tentou impedir o fecho da empresa Republic Windows and Doors, em 2008, em Chicago; ou ainda a dos empregados da grande empresa de rede telefónica fixa Verizon.


Estes combates e as suas derrotas podem alimentar muitas reflexões e inserir as acções – diversas e criativas – da OWS numa história política e social. Passado e presente entrelaçam-se para, quem sabe, desenhar o futuro.


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Desde logo o apoio do Local 100 do [sindicato] New York Transport Workers é da maior importância, à luz do impacto da greve realizada em 2005. Marvin Holland, responsável pela acção de bairro deste sindicato – que representa, em Nova Iorque, 38.000 condutores de autocarros e de comboios –, declara: «Apoiamos Occupy Wall Street porque estamos 99% de acordo com o que dizem os que protestam. Eles têm 100% de razão quando dizem que os bancos estão na origem do problema. Temos aqui membros do TWU (Transport Workers Union), Local 100, desde o primeiro dia.» O que ressalta daqui é a ideia-força: “Ocupar em conjunto”.


O presidente do TWU, Local 100, John Samuelson, em conversa transmitida por um canal de televisão, explica: «Há um clima de desespero, creio, entre os trabalhadores e as famílias dos trabalhadores deste país; o que não foi percebido pela gente do governo. Há muitos milionários no Congresso que não fazem a mínima ideia do que significa criar um filho ou pagar-lhe os estudos ou pagar os juros de um empréstimo hipotecário. Há muita gente no governo que perdeu o contacto com o mundo real. Estes protestos trouxeram à luz do dia a disparidade da riqueza nos Estados Unidos, a qual foi crescendo ao longo dos últimos decénios. Penso que uma das grandes vantagens resultantes do facto de o movimento operário organizado entrar neste combate pode estar na sua capacidade para articular esta mensagem… em nome das famílias de assalariados, quer os seus membros sejam sindicalizados, quer não.» Podemos ter essa esperança, desde que a presença sindical não tente apagar o aspecto plural do movimento.




Esta presença de activistas, de militantes sindicais e da esquerda política organizada encontra-se também nas outras cidades principais, em graus diversos. Assim, em Los Angeles, onde a ocupação foi organizada à frente do edifício do município, houve membros do SEIU (Service Employees International Union), Local 1021, que rapidamente se juntaram ao OWS. Este é um dos raros sindicatos que têm vindo a crescer nos EUA.

Perante a crise financeira e os confiscos de casas, a palavra de ordem «Os bancos que paguem» tornou-se um factor de agregação. A junção foi realizada em 6 de Outubro com a Alliance of Californians for Community Empowerment (ACCE), a qual representa uma actividade real ao nível dos bairros em defesa da habitação [moradia], da saúde ou da educação. Este tipo de laços manifesta-se em muitas cidades. O que suscita discussões acerca das modalidades de organização do movimento, com vistas a garantir a presença nas assembleias de trabalhadores com um emprego e uma organização de vida diferente de uma fracção activa e militante do OWS.


A emergência deste movimento permite vislumbrar um deslocamento, mesmo que muito limitado, das orientações no plano político. Por outras palavras, a bipolarização – entre, por um lado, o Tea Party e, por outro, o governo de Obama com o seu cortejo de decepções – poderia ser perturbada. O que iria aumentar as possibilidades de uma intervenção social e política apoiada num actor que não esteja preso a este falso dilema.

Mas não nos precipitemos. A capacidade de controlo e de canalização do Partido Democrata, sobretudo à escala local, ainda é forte. As declarações iniciais de Obama, em 8 de Outubro de 2011, são um sinal disso.


Notas do tradutor




[2] O site alencontre.org está sediado na Suíça.

Artigo original (em francês) em alencontre.org. Tradução do Passa Palavra.

A “geração Seattle” e

a “geração de acampantes”


4 de Novembro de 2011  
A análise do passado e do presente é imprescindível, e tem como objetivo não apenas saber do futuro, mas sabê-lo para, conhecendo suas tendências, agir imediatamente para que o indesejável não venha. Por Manolo


Com muita frequência, entre um período histórico e outro dez anos podem decerto ser tempo suficiente para revelar as contradições de um século inteiro. Portanto, às vezes temos que compreender que nossos julgamentos, nossa interpretação e mesmo nossas esperanças podem ter sido completamente equivocadas – equivocadas, e só.


Marlon Brando, na pele do economic hitman inglês Willam Walker, no filme Queimada!, de Gillo Pontecorvo (1969)


Com o recente movimento dos acampamentos, muitos da assim chamada “geração Seattle” voltaram não apenas a manifestar-se publicamente em defesa das mobilizações, mas a sentir-se novamente em casa nas ruas junto com outros mais novos que constroem espaços de militância nas praças e espaços públicos de todo o mundo.


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Sou, eu mesmo, integrante da dita “geração Seattle”. Mais de dez anos se passaram desde os primeiros Dias de Ação Global em 1998 e 1999, quando achávamos – todos nós – que era agora ou nunca. As esperanças daqueles anos de mobilização intensa entre 1999 e 2001 foram abafadas à força de muita porrada, gás pimenta, prisões e mortes. Alguns recolheram-se às suas memórias, outros tantos debandaram sabe-se lá para onde, mas considerável quantidade segue nas lutas de hoje e participa como pode.


“Mas”, perguntaria um leitor intrigado, “por que ser tão rancoroso lembrando dessas coisas logo no começo de um artigo sobre um movimento tão jovem, alegre e vibrante quanto o dos acampamentos e ocupações de praças e espaços públicos?”


Até o momento, os acampamentos são, para uma geração que começa agora a envolver-se em atividades coletivas, de um lado, e na luta anticapitalista, de outro, algo que para nós da “geração Seattle” representaram tanto o levante zapatista em 1994 quanto a manifestação contra a Rodada do Milênio da OMC em 1999: um ponto de viragem, um marco histórico, um chamado à ação – chamem-no como quiserem, mas para as jovens mentes ativistas de então aquilo nos marcou como ferro em brasa. Alguns tomam esta semelhança como conclusão a ser defendida como posição política séria, quando não é nada além do ponto de partida para a reflexão e intervenção sobre o presente. Pululam artigos sobre a maravilha dos debates, sobre o inusitado das ocupações de espaços públicos, sobre o charme de um ou outro participante, sobre a retomada da “cidadania” por parte dos que lá estão, sobre a existencialmente refrescante experiência da construção destes espaços políticos…


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Qualquer de nós presentes nas lutas de 1999/2001 deve lembrar-se do quanto fomos elogiados por retomarmos ações militantes, até que por volta de 2001 começaram a cobrar-nos “maturidade” (como se fossemos crianças brincando com fogo), “foco” (como se nossas lutas não o apontassem), “pauta” (como se não a conhecessem) e coisas do tipo. Construíram o Fórum Social Mundial por sobre a história de nossos corpos marcados, e o recrudescimento da repressão em nível global após os eventos do 11 de setembro dilacerou o que restava de nossos esforços. Para muitos, foi preciso começar tudo de novo.

A reflexão sobre aqueles dias tumultuosos de dez anos atrás, os rumos posteriores daqueles companheiros (e ex-companheiros) e a vivência destes dez anos de aparente marasmo impõem mudar o eixo dos debates sobre os acampamentos. (Digo “aparente” marasmo porque as lutas de lá para cá fragmentaram-se tanto que sequer se podia imaginar as ligações, reais ou virtuais, que seguiram existindo sob a aparência da calmaria e impulsionaram tantas lutas locais.) As razões dos manifestantes ou o elogio de sua iniciativa, aqui, saem de cena; entram algumas perguntas sobre o fazer-se das ocupações, tentando encontrar aí diferenças e pontos comuns com aquilo que vivemos há tanto e tão pouco tempo.


Os acampamentos pretendem-se permanentes, transitórios, ou não pautam esta questão? Para a “geração Seattle” a mesma questão talvez tenha sido pautada de outra maneira. Dada a forma de mobilização eminentemente transitória que escolheu (manifestações e assembleias paralelas, no tempo e às vezes no espaço, as cúpulas gestoriais mundiais), o que precisava ser permanente não era a presença nos territórios de luta, mas a mobilização em rede, para que pudéssemos deliberar, mesmo precariamente, sobre os próximos passos. Os debates sobre as formas de protesto que cada grupo pretendia empregar naqueles dias – marchas, ações contra alvos específicos (bancos, lojas, lanchonetes etc.) – tentavam garantir a segurança de cada grupo segundo a tática escolhida, mas, finalizadas as grandes manifestações, cada qual retornava a seu espaço de ação (coletivo, movimento social, rede, sindicato, partido, entidade estudantil, grupo de afinidade etc.) para retomar as atividades, embora com novo impulso e conhecendo incontáveis outros com quem buscar construir relações de solidariedade militante. Nos acampamentos de hoje, e até o momento, a permanência em determinado espaço físico, mesmo com curtos hiatos, é a forma adotada pelas mobilizações, o que impõe debater questões como a permanência e/ou revezamento de pessoas, alimentação, limpeza, resistência contra investidas policiais, proteção contra clima adverso etc.. Não estaria também gravitando sobre a cabeça dos acampantes, mesmo à sua revelia, a dificílima decisão sobre o tempo do protesto, e consequentemente de sua sustentação material e política? Ou o que se pretende, de fato, é fazer da praça pública uma ágora grega rediviva, conectada virtualmente com outras tantas enquanto for possível?


Qual a relação dos acampamentos com aqueles que já ocupavam o território onde se constroem? Para a “geração Seattle”, a questão era, de certa forma, simples. Salvo se já se tratasse de ativistas residentes na própria cidade onde se dariam os protestos – e foram centenas pelo mundo inteiro – ao definirmos uma zona de protestos e ao ocupá-la com ações diversas, das mais “militantes” às mais “bem-humoradas”, sabíamos que as relações com as pessoas que lá estavam seriam transitórias, existentes apenas enquanto se desse a reunião de cúpula que pretendíamos inviabilizar. Em alguns casos, as manifestações ocorriam em trajetos já tradicionalmente marcados por ações políticas diversas, o que terminava diluindo a potência do protesto; noutros lugares, pouco experimentados, vivemos situações inusitadas. No caso dos acampamentos, entretanto, é impossível pensar na construção de um espaço político sem perguntar-se algo neste nível e lançar esta pergunta tanto a fatos aparentemente incontroversos – como as razões para a escolha do local – quanto ao cotidiano do acampamento. Lá já estavam não apenas os vizinhos formais – lojas, restaurantes, lanchonetes, prédios comerciais ou residenciais, oficinas, fotocopiadoras, igrejas, museus, terminais ou pontos de ônibus etc. – mas sobretudo aqueles para quem a rua é espaço de sobrevivência e existência: catadores de material reciclável, artistas de rua, ambulantes, camelôs e especialmente aqueles que sequer existem oficialmente, a julgar pela forma como são tratados pelos Censos: os moradores de rua. Pelo que tenho visto em relatos, há interessantes relações estabelecendo-se, mas irão elas além do compartilhar um prato de comida, do convite à participação ou da solidariedade a casos emergenciais? De que forma, por exemplo, as defesas jurídicas à permanência nos espaços públicos pode estender-se aos moradores de rua, ou aos camelôs que em todas as cidades são perseguidos como a própria peste, ou aos tantos outros que são obrigados a submeter-se a toques de recolher oficiais ou oficiosos mundo afora?


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Qual a relação dos acampamentos com movimentos sociais formalmente organizados (sem-teto, sem-terra, sindicatos, pastorais, coletivos artísticos etc.)? A “geração Seattle” não apenas organizou-se em formas próprias como também lançou-se abertamente à colaboração com movimentos sociais vários, e mesmo muitos dentre nós já os integravam anteriormente. Com a radicalização, inclusive, foi possível construir pontes antes inimagináveis, como entre o movimento do software livre (em suas várias vertentes) e os movimentos de luta pela reforma agrária, entre o movimento das rádios livres e o movimento anti-manicomial, entre coletivos ativistas e moradores de rua… Houve tensões de parte a parte, assim como muita ingenuidade; houve dentre nós quem pensou – e o disse em artigos públicos – que os movimentos correriam às ferramentas que criávamos como algo imprescindível às suas lutas. Vistas as coisas após dez anos, a tônica destas relações foi a de irmos até os movimentos como quem vai prestar-lhes serviços – serviços militantes, mas nem por isto menos serviços. (Não é de estranhar que muitos dentre nós – eu inclusive – trabalhem hoje no assim chamado “terceiro setor”, com variados graus tanto de compromisso militante quanto de picaretagem.) Hoje parece que o sentido foi invertido, pois sabe-se que em alguns lugares estão se desenvolvendo relações bastante solidárias dos movimentos para com os acampados, materializadas no empréstimo de materiais e na presença em certos eventos mutuamente acordados. É feliz que alguns acampamentos – não todos – estejam buscando este apoio e que o encontrem, mas isto é uma solidariedade “de fora para dentro” do acampamento; que formas de solidariedade “de dentro para fora” do acampamento podem ser articuladas sem degenerar apenas em “prestação de serviços”? O que se pretende com estes movimentos além da solidariedade material e de algumas falas críticas nas assembleias?


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Os acampados têm algum tipo de crítica à dependência excessiva da informática que tem sido sua tônica? A “geração Seattle” foi talvez a primeira a empregar a internet como instrumento de mobilização, embora naquela época pouco se dispusesse além de correios eletrônicos, pequenos sites e grupos. A grande invenção daquele momento foi a estrutura colaborativa inaugurada pelo Indymedia/Centro de Mídia Independente, precursora em muitos aspectos das redes sociais hoje empregues como ferramenta de mobilização: um site aberto à publicação de relatos por qualquer pessoa que quisesse relatar o que quer que fosse a respeito dos protestos em que houvesse participado, ou publicar convocatórias, ou enviar fotos e vídeos etc.. (A rede Indymedia/Centro de Mídia Independente depois expandiu-se, adquiriu vida própria e segue com suas atividades.) Esta grande inovação, entretanto, tinha seus limites; em seus primeiros anos, por sinal exatamente aqueles de mais forte mobilização, era acessada quase somente por militantes e ativistas envolvidos com os protestos – com as “nobres” exceções de jornalistas atrás de fontes fáceis e dos onipresentes serviços de inteligência policial e militar. Para piorar, a crescente dependência de alguma técnica de comunicação – internet principalmente – por parte dos inúmeros grupos, coletivos e outras organizações gerou o fenômeno da “adhocracia geek”, ou seja, de uma “camada” social detentora de conhecimento técnico em informática difusa por toda a “geração Seattle”. Mesmo involuntariamente, a “adhocracia geek” transformou o conhecimento destas técnicas em meio de concentrar poder, ainda que por pouco tempo. Hoje, não é novidade para ninguém que a internet tem papel fundamental para a articulação dos acampantes; mas até que ponto a internet e a informática serve-lhes de limitação? A dependência de certa “militância virtual” que “curte” ou “confirma” participação nos acampamentos sem prestar-lhes qualquer outro apoio prático não arriscaria criar entre os acampantes expectativas de participação muito mais altas do que aquelas que são capazes de mobilizar? Não estaria sendo gestada aí, tal como na “geração Seattle”, uma nova “adhocracia geek”?


Como os acampados têm lidado com as diversas tentativas de cooptação de sua luta? A “geração Seattle” tentou conscientemente abandonar qualquer tutela sobre movimentos sociais e qualquer iniciativa que lhes impusesse uma pauta externa, mas foi rasgada internamente por questões semelhantes àquelas que tanto criticou – em especial se considerarmos sua forma preferida de organização, os grupos de afinidade, calcados explicitamente na extrema proximidade política e pessoal entre seus integrantes. Eles serviram muito bem como defesa contra o aparelhamento externo típico das organizações calcadas sobre o leninismo, mas ao mesmo tempo instauraram novas formas de conflito entre si próprios e outros grupos de afinidade presentes num espaço de decisão. Da mesma forma, grupos diferentes podiam articular-se previamente quanto a determinada pauta e comparecer às assembleias para agir como bloco; em se tratando de grupos diferentes (embora unidos por um propósito oculto comum), seria impossível a um participante desavisado percebê-los como tal. Graças a este artifício, o que antes era uma deliberação prévia por parte de certos grupos para orientar a assembleia em tal ou qual rumo poderia passar tranquilamente como uma deliberação democrática, surgida no calor da hora e tecida em longos debates tendentes ao consenso. Nisto, os grupos de afinidade diferiram pouco do mal senil do leninismo de que tanto quiseram se livrar. Hoje, já se tentou de tudo para dobrar os acampamentos a vontades externas, desde as recorrentes discussões sobre bandeiras de partidos até o mais simples domínio pessoal, como se dá em cidades onde os acampantes são poucos, mas os riscos em espaços “autônomos” seguem os mesmos: tem sido possível aos acampantes identificar os grupos e os blocos que se formam? Ou seria esta desconfiança causa de verdadeira paranoia num lugar onde tão poucos se conhecem previamente e há tantos desejos em jogo? E quanto às tentativas de cooptação vindas “de fora”, como os acampantes têm lidado com elas? Como lidar com as tentativas de cooptação vindas da imprensa que tenta impor, de fora, uma pauta aos acampantes, sob pena de anátema? Como lidar com as ofertas aparentemente “desinteressadas” de recursos e infraestrutura vindas do terceiro setor, cuja rejeição decerto fomentará acusações de “sectarismo” e “inabilidade de diálogo”? Como lidar com grupos empresariais ligados à economia da criatividade que tentam capitalizar para si a mobilização tão dificilmente construída?



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Os acampamentos pretendem atrair mais pessoas, ou pretendem manter-se com a quantidade de pessoas que hoje os frequentam? A “geração Seattle”, na corda bamba entre a ação militante (que pedia linguagem e prática radicais) e a demonstração mais ampla de suas razões (que pedia linguagem e prática com maior capacidade de diálogo), viveu angustiadamente a tensão entre querer a mais ampla participação de todos nas lutas e o temor causado por certos tipos de ação direta demonizada pelos meios corporativos de comunicação. Embora houvesse grupos de afinidade decididamente voltados para qualquer destas alternativas, não foram poucos os que viveram esta contradição por dentro. Como em meios ditos “autônomos” a proximidade pessoal tem o efeito adverso de pressupor como certa a afinidade política, isto foi causa de um sem-número de “rachas”, brigas, anátemas e mesmo de perseguições, tudo somando para o esfacelamento das relações coletivas, mesmo quando algumas relações pessoais sobreviviam ao furacão. Vencemos ao atrasarmos certas deliberações de cúpula e ao pautarmos novamente, quando não a derrubada do capitalismo – e é preciso admitir que nem todos da “geração Seattle” desejavam-na – os efeitos perversos de seu funcionamento àquela altura; mas fomos derrotados em nossas tentativas de trazer mais pessoas para a construção de novas relações sociais capazes de subverter em definitivo o status quo. (Fosse o contrário, se houvéssemos conseguido construir estas novas relações com amplitude e força suficientes para derrubar o capitalismo, os acampamentos de hoje talvez nem existissem.) É curioso como os acampamentos vivem o mesmo problema sob outra forma. Embora muitos passem por perto, poucos param sequer para dar uma espiadinha; dentre estes últimos, poucos ficam para conhecer melhor; e dentre estes, poucos integram-se realmente à dinâmica do acampamento. Embora pareçam infinitamente menos radicais que os Dias de Ação Global, sua presença e permanência traz para alguns um misto de estranhamento, esperança, dúvida e ceticismo com o qual os acampantes ainda não deram mostras de saber lidar. Mas seriam estas pessoas ditas “comuns” quem os acampamentos pretendem atrair? Ou os acampamentos são um esforço conjunto para visibilizar a pauta de movimentos já existentes? Em qualquer dos casos, como conciliar a linguagem semi-técnica do ativismo – e quem pensa que o ativismo não cria seu próprio jargão vive na inocência útil – com aquela destas pessoas ditas “comuns”? Isto é realmente desejado pelos acampantes?


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Como os acampamentos pretendem encaminhar suas reivindicações? A “geração Seattle” foi muitas vezes acusada de ter apenas uma “pauta negativa” sem apresentar uma “pauta positiva” – ou seja, de dizer o que quer destruir ao invés de dizer o que quer construir. A construção coletiva das mobilizações, o diálogo entre movimentos tão diversos quanto o dos anarcopunks e o dos camponeses bolivianos, as incontáveis formas de solidariedade prática, tudo isto era apagado para fazer dos dias de mobilização um raio no céu azul. Era mais uma tentativa de medir as mobilizações não pelo que apresentavam de novo, mas pela sua adaptação a um padrão segundo o qual toda mobilização deve apresentar um conjunto de reivindicações e negociá-la, paulatinamente, até alcançar seus resultados – em geral quando já são inócuos. O grupo que fundou o Fórum Social Mundial não apenas aproveitou-se desta crítica para criá-lo, como em grande parte foi ele mesmo a veiculá-la e disseminá-la. E aquilo que foi efetivamente construído pela “geração Seattle” – um grande esforço pela igualdade, coletivismo e solidariedade entre a militância – foi desqualificado sistematicamente como “baderna”. Hoje, o traço marcante de todos os acampamentos é o questionamento crítico a qualquer rotina que se pretenda estabelecer sem prévia deliberação coletiva. Ponto para este princípio básico da autogestão – palavra mágica que circula de boca a ouvido e de teclado a tela entre acampantes e suas redes de apoio. Segundo as informações que tenho recebido, alguns querem tirar uma pauta de reivindicações, seja trazendo-as prontas “de fora” e tentando impô-las aos acampados, seja tecendo-as ponto a ponto nas próprias assembleias. Outros pretendem que não haja pauta coletiva alguma, que não haja nenhuma deliberação “em nome” do acampamento. Todavia, enquanto algumas propostas podem ser imediatamente implementadas pelos acampantes e seus grupos de apoio, outras, talvez de construção ainda embrionária nas assembleias, precisam necessariamente da construção de formas de ação que ultrapassem os limites territoriais e virtuais dos acampamentos. Talvez seja este o problema mais duro a ser enfrentado: agora que nos juntamos e chegamos a alguns acordos, como fazer para tornar real aquilo que projetamos?

***

Há outras perguntas, muitas, tantas quantos são os possíveis problemas. Algumas sequer são esboçadas nos acampamentos, outras são suas angústias mais dilacerantes. Não as apresento para fazer qualquer tipo de interrogatório ou acusação; são tentativas de ver o que temos de semelhante, nós da “geração Seattle” e estes que ocupam as ruas, para assim nos apoiarmos melhor, onde quer que estejamos. Digo isto por princípio político. Para quem se lança à luta anticapitalista, não importa com que corrente ideológica simpatize ou a qual tradição de lutas se integre; a análise do passado e do presente é imprescindível, e tem como objetivo não apenas saber do futuro, mas sabê-lo para, conhecendo suas tendências, agir imediatamente para que o indesejável não venha. Estas tentativas de antecipar o indesejável, para serem eficazes, precisam evitar as generalidades e lançar-se, sem temores ou expectativas, nos problemas e aparentes questiúnculas que atravessaram as lutas passadas, formadoras do presente, pois estes problemas e questões “menores”, tal como o diabo, moram nos detalhes. Mesmo estas precauções podem mostrar-se infelizmente inúteis, e o esforço de uma geração inteira de militantes pode terminar mais uma vez indo pelo ralo das derrotas. Por isto mesmo, analisá-las é tão importante quanto divulgar as vitórias.


Entre símbolos e ações simbólicas:

os indignados e as acampadas

6 de Novembro de 2011  
Afinal, os espaços de discussão, se quiserem ser algo frutífero e expansivo, não podem se limitar a resolver demandas criadas pela sua própria existência.

Por Passa Palavra



Diferenças entre os contextos das revoluções no mundo Árabe, no Norte e no Brasil


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Foi no mundo Árabe onde muito se buscou inspiração - e, muitas vezes, semelhança - para as recentes acampadas que acontecem hoje em algumas cidades do Brasil, da Europa e dos Estados Unidos. Artigos deste mesmo site já tentaram contribuir com a desmistificação de alguns pontos e com a demarcação de diferença de contextos entre a situação Europeia e dos povos árabes em luta [1]. Resumidamente, podemos destacar aqui que a diferença básica entre o Norte, Sul e Leste é que, enquanto neste último as mobilizações buscavam derrubar ditaduras de decênios no poder, no países do Norte e no Brasil elas se limitam a questionar alguns aspectos dos seus sistemas políticos. Neste artigo, porém, o que mais importa é marcar as distinções entre os contextos do Norte (Europa e Estados Unidos) e o Brasil.


Assunto também já discutido por aqui [2], o contexto europeu e estadunidense é de uma crise interna aos seus mecanismos de expansão econômica. Assim, as grandes empresas monopolistas, ciosas por manterem suas taxas de crescimento, passaram a endurecer seus critérios sobre o conjunto de suas economias, promovendo um processo de centralização de capital sob o controle de um número menor de capitalistas. Esta situação se refletiu imediatamente sobre a parte dos capitalistas menos adaptados às novas condições competitivas, como também sobre uma massa enorme de pessoas que, como também já assinalado neste site [3], veem progressivamente decaírem suas condições de vida. Este é o substrato real das movimentações no Norte: a queda no padrão de vida é o impulso que retira da passividade uma grande massa de pessoas.


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No Brasil a situação é completamente outra. Enquanto no Norte vê-se uma tendência à estagnação econômica, por aqui o que se assiste é ao momento histórico do “nunca antes neste país…”, com índices de crescimento econômicos somente comparados a de seus companheiros emergentes, os chamados BRICS. Três artigos recentres saídos na imprensa poderiam assinalar muito claramente o que dizemos [4]. Enquanto parte da esquerda no Brasil continua a perceber o país como um superexplorado pelo imperialismo, capitalistas do lado de lá e de cá do oceano começam a se organizar para as ondas de privatização que ocorrerão na Europa. Não é à toa que o governo brasileiro afirma não estarmos passando por tempos de pessimismo, e sim de oportunidades, hora de aproveitar para fortalecer a posição das empresas privadas no mercado europeu.


No entanto, disso não se conclui que em um quadro de crescimento econômico, como o verificado no Brasil, toda e qualquer luta social esteja impossibilitada de acontecer. Em sentido diverso, seria mais correto se perguntar, a nosso ver, em que termos elas podem ocorrer. Isto implica em desenvolver discussões e reflexões próprias, não ficando reféns à adesão de pautas e bandeiras emanadas de situações concretas tão distintas.


Assim, enquanto no contexto dos países do norte se vê com clareza o que fundamenta as ocupações e acampadas, por aqui, em sentido inverso, o que se vê é uma enorme dispersão e justaposição de pautas (não raramente, antagônicas), caminhando desde o ecologismo até as denúncias contra a corrupção, cujo substrato é fundamentalmente moralista.


Composição Social


No Norte, como consequência imediata da situação sócio-econômica, podemos observar que participam das ocupações um grande número de trabalhadores de diferentes setores, desempregados, estudantes e pessoas que de alguma maneira não querem que os governos nacionais arquem com as consequências da crise econômica. Embora em sua maioria se trate de jovens, não é possível restringir sua composição a uma única faixa etária, posto que os cortes governamentais, os chamados “fechamentos da torneiras”, recaem sobre uma ampla gama da população, rebaixando as condições daquilo que se chama de classe média.

No Brasil, porém, a composição social das acampadas parece ser muito mais restrita, girando em torno de estudantes universitários, alguns poucos secundaristas e moradores das ruas. A grande maioria dos manifestantes são jovens, em algumas regiões alguns ativistas “das antigas” dão o suporte necessário, sendo trabalhadores e moradores de rua (São Paulo) a aparecerem como coadjuvantes. Talvez por este motivo, e por não terem uma base social concreta sobre a qual projetar o movimento, é que se tornam por vezes tão caricatos e dispersantes em seus objetivos.


Além disso, cabe destacar que o fato de terem energia e não terem substrato e projeto político minimamente definidos, faz com que se abram muitas possibilidades aos movimentos, inclusivamente a de fundirem-se  às indignações tipicamente conservadoras, como o são as marchas contra a corrupção, que abordam as questões do capitalismo de um ponto de vista altamente moralista e moralizador.


Ideia geral


Mas para o que exatamente se busca chamar a atenção?


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Os diversos relatos que circulam pela rede, em geral, procuram salientar as acampadas como o prolegômeno de uma revolução, formadas por pessoas normais, sem filiação partidária ou sindical, que procuram dedicar um pouco do seu tempo para o bem comum e lutar contra as injustiças do sistema. Contudo, o que pode-se observar é que, sob lema da “indignação”, e baseado em estruturas de organização pouco claras e dispersantes, estes movimentos podem ter como triste fim a assimilação por parte dos velhos abutres de plantão, em suas profissionalíssimas formas de apropriação da luta alheia.


No geral, estas manifestações têm como ponto de partida convocatórias feitas pela internet, principalmente pela rede social mais utilizada do momento, o Facebook. Esta prática, que por um lado seria instrumento para garantir amplitude ao movimento e participação espontânea, acaba por salientar seu principal empecilho: a não participação real das pessoas na construção do processo de luta e seu consequente esvaziamento.


As convocatórias para as manifestações “aparecem” nas redes sociais “do nada”, marcando dia e hora para as pessoas saírem às ruas para protestar, com pautas, estrutura do movimento e ações previamente tiradas. Mas tiradas por quem, se é um movimento oriundo da rede?


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Alguns relatos que chegaram até nós enfatizam o exposto acima: “[Em Salvador] Apareceu no Facebook uma ata de uma reunião que ninguém viu a convocatória, na qual se deliberou que os partidos poderiam levantar suas bandeiras, pois se tratava de uma mobilização em ‘pró da democracia’”. A divulgação desta ata, por mais irônico que isso seja, evidencia, pelo menos, uma preocupação com a participação popular, já que, segundo outro relato, de Goiânia, os organizadores do movimento nem com isso se preocuparam. As pessoas que compareceram na Praça Cívica de Goiânia mal sabiam como havia sido tirada a pauta que reivindicava o fim da corrupção, os 10% do PIB para a educação e luta por um mundo democrático e mais justo.[5]


Os atores


Do ponto de vista político, dezenas de tendências se embatem nestes movimentos. Dos tradicionais partidos, passando por diferentes organizações sociais, chegando em autônomos dos mais diversos carizes. É destacável que em São Paulo e no Rio de Janeiro estes grupos foram expulsos das acampadas, enquanto em Goiânia eles simplesmente foram neutralizados. Assim, dos que restam, como defini-los? A grande maioria adere a onda de manifestações em grande parte somente confirmando sua participação pela internet. Contudo, há aqueles que, mesmo sendo uma minoria, saem do mundo virtual e vão às ruas, dando assim uma estrutura concreta para as acampadas.


Mas é possível um movimento que não tenha uma construção coletiva obter alguma conquista? Percebemos que em algumas manifestações o que se vê é “Um microfone manipulado por dois ou três. [que] Vão andar o mesmo trajeto de sempre. Puxar as mesmas palavras de ordem de sempre.”. Ao mesmo tempo, em algumas localidades, uma vez contestada a forma de organização e pauta previamente tirada, e frente à nova proposta de estruturação e ações tiradas coletivamente, grande parte dos grupos se retiram. Alguns, pelo fato destas posições serem contrárias a de seus grupos partidários, outros porque se restringem à indignação, sendo que, para estas, “pouco importa o sistema, sua estrutura, organização econômica ou política, o que não querem é aguentar calados”.


Desta forma, as mobilizações e manifestações vão se transformando em um processo onde ”[…] essa história de juntar todas as reivindicações e ir pra rua não é, de forma nenhuma, construir novas relações sociais.”, cujo cume pode ser já previsto por alguns: “Mas isso me parece o maior ‘movimento para o nada’ que se pode dizer que o ‘movimento autônomo’ fez nos últimos anos (…) O que ocorre agora é algo semelhante (no público/na organização e nas oficinas), mas que com certeza não está no horizonte um movimento popular, isto é, que tenha a preocupação de envolver trabalhadores de outras classes em sua organização”.


Os acampamentos pelo Brasil


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Estas são características gerais que se pode observar nas acampadas, mas a especificidade local também tem seu espaço, o que conduz estes movimentos a caminhos diferentes em algumas situações. De acordo com o relato de Goiânia, lá conseguiram transpor a pauta reivindicatória divulgada pelo facebook, organizando uma assembleia com o objetivo de decidir coletivamente quais seriam os rumos do movimento. E após o desconforto causado pela intervenção de uma mulher necessitada de ajuda, a assembleia decidiu por pautar um movimento de base, sendo que as novas investidas, decididas coletivamente, dar-se-iam sobre a precariedade do sistema de transporte coletivo.


Em Salvador, é flagrante o reduzido número de pessoas, que pode estar relacionado com a escolha do local, um espaço desligado da vida da cidade e à beira mar, que traz agravantes no que tange à sua estruturação, aliada às fortes chuvas do período, fazendo com que as principais atividades dos manifestantes ocorram em espaços diversos daquele onde estão acampados.


Em São Paulo, o movimento que resolveu acampar embaixo do Viaduto do Chá, nos primeiros dias se deparou com problemas de infra-estrutura, baixas temperaturas e chuvas que dificultaram a organização do espaço. Vencida esta etapa, neste instante parece contar com uma população flutuante que chega a picos de 200 pessoas.


No Rio de Janeiro, o movimento de ocupação que se estruturou somente uma semana após a convocatória do dia 15 de outubro, decidindo por ocupar a Cinelândia, hoje conta com cerca de 100 barracas e uma população flutuante próxima ao número de São Paulo. Em ambos os casos a principal tendência inicial foi a de discutir aspectos de organização interna, chegando em alguns momentos a patinar sobre o tema.


Obviamente que debates e divisões de tarefas que concernem à difícil arte da convivência coletiva serão sempre pertinentes e cruciais para definir os caminhos que tomará um dado movimento, contudo, quando tomam quase todo o expediente de trabalho de uma ocupação, podem ser, ironicamente, o sinal de que aquilo que era para ser tão-somente um meio para se atingir um objetivo esteja se tornando a própria finalidade, constituindo um verdadeiro processo de fetichização da organização. Afinal, os espaços de discussão, se quiserem ser algo frutífero e expansivo, não podem se limitar a resolver demandas criadas pela sua própria existência.


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Em sentido inverso começa a se esboçar uma preocupação que passa pautar a inserção de discussões e temas que extrapolem o universo daqueles que estão ali acampados. Contudo, estas preocupações ainda não se tem transformado em ações efetivas. Se conseguirão ultrapassar este limite, só o tempo irá dizer, embora esteja claro que muitos problemas e contradições terão de ser vencidos.


Porém o mais preocupante de toda esta história está na dispersão de um forte potencial de mobilização presente nestas manifestações: ”Nos três casos [Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro], e mais fortemente nos dois primeiros, o que todos querem é falar, conversar, discutir, debater, embora poucos percebam que talvez estejam discutindo com espelhos. Como esta onda de ocupações de praça ainda está no começo, espero – e prefiro – estar errado, mas a impressão que tenho é de que todos voltarão para casa assim que seus patrões ou seus pais os chamarem de volta”.


A ação puramente simbólica e o caminho da politização


Antes que nos acusem de ser demasiadamente pessimistas ou imobilistas, convém assinalar que temos em conta os diferentes significados que tais manifestações podem assumir em suas localidades, em função da especificidade de contextos e base social que as compõem. Se o tratamos pelo termo manifestações, é porque temos por pressuposto que, de alguma maneira, estes eventos exprimam, ou sejam resultado de, um processo social que lhes de sustentação. Neste caso, impõe-se tomar como critério a seguinte questão: em que medida, e sob que aspectos, as acampadas manifestam uma construção coletiva anterior, que esteja de fato ampliando pelas bases processos consistentes e cotidianos de democracia direta? E mais: de que maneira elas representam um ataque aos fundamentos da ordem capitalista, que, se se deixa aparentar democrática no plano político formal, acolhendo críticas e indignações, não tolera qualquer ligeiro tremor nas suas estruturas produtivas? Parece-nos estas as perguntas a serem feitas para cada caso em particular. E, sob esta ótica, muitas vezes as iniciativas mais discretas podem ser mais frutíferas do que os grandes estardalhaços.


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Assim, se se quer que as acampadas ultrapassem o número limitado de pessoas, que na maioria das vezes já contam com uma prévia identificação, é urgente e necessária a construção de uma ponte com o mundo do trabalho, com as empresas, com as periferias, com as escolas e faculdades, ou seja, com o mundo das pessoas comuns. Se um dos objetivos é a construção de uma democracia verdadeira, certamente isto não ocorrerá a partir de espaços que não têm relação alguma com o cotidiano das pessoas. Neste contexto, ganham dimensão e importância o velho trabalho de base, onde há a construção e expansão cotidiana de novas relações sociais. Para se superar a onda de proclamações abstratas e dispersantes, é necessário fazer o caminho da politização, que consiste em  inserir o problema específico no contexto geral, e não o inverso, como tem sido a tônica. Se queremos que o acampamento tenha uma boa consistência, uma longa duração e grandes consequências políticas, é imprescindível que o próprio acampamento seja resultado de lutas concretas, de assembleias e comissões democráticas realizadas previamente em locais de trabalho, em bairros, em escolas, ou seja, em locais onde o que é decisivo para a vida acontece.


Do contrário, se se limitarem a existir enquanto o início de tudo, como as justificam em boa parte dos casos os seus entusiastas, e não como expressão de um acúmulo gerado a partir de processos de luta enraizados, então tudo não terá passado de mais um frenesi pós-moderno.

Notas

[1] Uganda: a luta da “ida a pé para o trabalho” e as lições do Soweto e da Praça Tahrir <http://passapalavra.info/?p=40752> e África e a “Revolução 2.0”: Activismo em rede e militância no terreno <http://passapalavra.info/?p=39994>.
[2] Série Ainda acerca da crise económica com 8 artigos, cujo primeiro o declínio dos Estados Unidos <http://passapalavra.info/?p=28011> traz os links dos demais ao final.
[3] Série Brasil hoje e amanhã com 8 artigos, cujo primeiro hesitações <http://passapalavra.info/?p=43646. traz os links dos demais ao final.
[5] Goiânia e as manifestações de 15 de outubro <http://passapalavra.info/?p=47715>.


E-MAIL RECEBIDO DE ANAND SAMPURNO . Imensamente grata!

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