quinta-feira, 5 de setembro de 2013

A Medicina Tibetana no tratamento de transtornos mentais: correlações com a farmacologia ocidental

Por Raquel Luna
Em 1959, Sua Santidade O Dalai Lama (no Tibete é o líder religioso e, até 2011, político também), juntamente com cerca de 80.000 refugiados tibetanos, escaparam para a Índia em exílio político após a ocupação chinesa no Tibete. A partir de então, Dharamsala, uma cidade localizada no norte da Índia, sedia a Administração Central Tibetana. No exílio, os tibetanos buscaram manter as peculiaridades da sua cultura, incluindo sua medicina. Assim, o Men-Tsee-Khang (Tibetan Medical and Astrological Institute) é uma instituição de ensino e prática da medicina tibetana, que foi estabelecido em Dharamsala, na Índia, em 1961 pelo XIV Dalai Lama.
Um estudo de etnofarmacologia, viabilizado por um convênio de intercâmbio entre a UNIFESP e o Men-Tsee-Khang, registrou as fórmulas medicinais utilizadas na medicina tibetana praticada no Men-Tsee-Khang para os transtornos mentais e neurológicos, correlacionando seus ingredientes com estudos da literatura científica quanto à atividade farmacológica. Um artigo sobre este trabalho foi publicado recentemente (ver resumo).
O trabalho de campo, em Dharamsala, Índia, foi realizado entre junho de 2010 e fevereiro de 2011, pelo CEE/UNIFESP, e teve como entrevistados médicos do Men-Tsse-Khang reconhecidos como possuidores de grande experiência e tradição no uso das plantas medicinais.
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Durante os primeiros cinco anos de formação médica, os futuros médicos tibetanos devem decorar os textos clássicos, além dos treinos das técnicas diagnósticas; acompanhamento de pacientes; e estudo de identificação e coleta dos ingredientes medicinais. Tradicionalmente, o ensino envolve a medicina e a astrologia tibetanas, sem incluir a biomedicina.
Conforme explicação dos entrevistados, a medicina tibetana entende a fisiologia a partir de um princípio humoral. Os três humores, rLungmKhris-pa, e Bad-kan, estão contidos no corpo humano e coordenam o funcionamento dos órgãos e sistemas. Os entrevistados explicaram que estes humores, ou energias estão, normalmente, equilibrados no organismo humano e que o desequilíbrio destas energias provoca doença.
A teoria física de surgimento das doenças relaciona-se às chamadas causas secundárias, ou imediatas, que são: dieta; comportamento (físico, mental); local (condições climáticas, condições sociais); e espíritos. Já o diagnóstico é feito através da observação, palpação e interrogação, sendo os exames físicos de pulso e urina extremamente importantes. Da mesma forma, o tratamento possui quatro abordagens: 1) dieta alimentar; 2) comportamento; 3) medicamentos; 4) terapias acessórias. Estas indicações serão feitas conforme o humor em desequilíbrio, de modo que as qualidades dos alimentos e comportamentos lhes sejam opostas. Na indicação de uma fórmula medicinal considera-se a variabilidade individual, logo um mesmo remédio não será indicado para todos os casos de uma determinada doença.
O estudo focou nas fórmulas medicinais utilizadas para os transtornos mentais e neurológicos. Na medicina tibetana, contam os entrevistados, a mente é composta pela consciência mais os cinco órgãos dos sentidos. Como todos os órgãos e sistemas, o funcionamento do SNC depende da ação dos três humores. Os entrevistados explicam que existe o estado normal da mente, no equilíbrio, e no desequilíbrio a mente torna-se perturbada. Tanto a mente agitada quanto a mente deprimida são reflexos do desequilíbrio de rLung, ou seja, quando rLung se desequilibra a atividade da mente será afetada, assim como outras funções no organismo relacionadas a este humor.  Para as doenças mentais não há medicação, mas sim para rLung.

tibetan wind horse







“rLung é o cavalo e a mente é o cavaleiro. O cavaleiro, mente, deve conduzir. Se o cavalo é bravo, perturba o cavaleiro. Quando se utiliza medicação, é sempre para o cavalo – rLung.”
Doenças como mal de Parkinson, mal de Alzheimer e esclerose múltipla estão relacionadas ao desequilíbrio de rLung nos ‘canais vitais brancos’ (equivalentes ao sistema nervoso), e nestes casos, não se ministra apenas medicação, mas também as terapias acessórias, como moxabustão, banhos medicinais, agulhas, óleo nos pontos de rLung.
A medicina tibetana praticada pelo Men-Tsee-Khang, a partir dos textos clássicos, possui disponível em seu repertório mais de 2.000 ingredientes medicinais, distribuídos em centenas de fórmulas. O uso das substâncias medicinais ocorre sempre com multi-ingredientes, sendo o uso de um único ingrediente uma exceção. Este sinergismo, segundo os entrevistados, faz com que cada planta tenha sua ação “suavizada”, por isso a fórmula pode ser utilizada por um longo período e provoca menos efeitos colaterais, sendo indicada para um número maior de condições. Pílulas e em pó são as principais formas farmacêuticas utilizadas no Men-Tsee-Khang.
Dentre o universo de 170 fórmulas para tratar os mais diversos distúrbios produzidas no Men-Tsee-Khang em Dharamsala atualmente, a partir de 200 ingredientes, 10 fórmulas foram indicadas pelos quatro entrevistados para os transtornos neuropsiquiátricos, e estas possuem na sua composição entre 8 e 35 ingredientes em cada fórmula. Nove fórmulas indicadas no estudo são pílulas e uma é um incenso.
A partir da revisão na literatura científica, constatou-se que todas as fórmulas indicadas para os transtornos neuropsiquiátricos de fato possuem ingredientes com ação farmacológica psicoativa ou neurológica. Ainda, muitos dos ingredientes com indicação para “desequilíbrio de rLung” não possuem estudos farmacológicos referentes a estas ações.
Entre as plantas medicinais contidas nas fórmulas indicadas, 41 possuíam estudos científicos de atividade biológica. Destas, 31 (75,6%) tiveram seus usos tibetanos coincidentes com atividades biológicas estudadas; e 24 (58,5%) possuem ação neuropsiquiátrica comprovada por estudos farmacológicos. Além disso, todas as dez fórmulas incluem ao menos um ingrediente cuja ação neuropsiquiátrica foi descrita na literatura farmacológica.
Pode-se concluir que práticas médicas tão distintas, como a medicina tibetana e a medicina ocidental, podem ser congruentes em relação ao uso que fazem de certas plantas medicinais, dada a alta concordância entre as indicações terapêuticas tibetanas e os estudos farmacológicos encontrados. No entanto, muitos dos ingredientes com indicação para “desordens de rLung” ou nos “canais vitais brancos” (tecido nervoso) não possuem estudos científicos referentes à atividade psicoativa e podem ser potenciais terapêuticos. Tais estudos se justificam pela grande frequência de doenças mentais e seu impacto sobre a saúde pública, e os prejuízos que causam ao indivíduo.
Referência
Antonio RL, Kozasa EH, Galduróz JC, Dawa, Dorjee Y, Kalsang T, Norbu T, Tenzin T, Rodrigues E. Formulas used by Tibetan doctors at Men-Tsee-Khang in India for the treatment of neuropsychiatric disorders and their correlation with pharmacological data. Phytotherapy Research, 27(4): 552-563, 2013.
Raquel Luna é Naturóloga, Mestre em Ciências e Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo.

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